Leão XIV: a Missão (de novo) no Vaticano

Com Leão XIV, missionário agostiniano no Peru, a missão está de regresso ao Vaticano. Foto: DR

(Manuel Vilas Boas, jornalista) – A eleição de Leão XIV faz regressar “à mãe-pátria” do catolicismo a Missão, algo ainda difusa, nos quatro cantos do mundo.

Estava ali, em carne e osso, às portas do mundo, o missionário agostiniano, Robert Francis Prevost, de 69 anos, natural de Chicago, nos Estados Unidos. Assomou, imprevistamente, à varanda central (loggia) da Basílica de São Pedro, no Vaticano, revelando a sua identidade essencial:  filho espiritual de um poderoso líder religioso, Agostinho de Hipona. 

    Pela história sabemos que, no século XIII, a doutrina e teologia deste pensador cristão acompanhou a fundação dos frades mendicantes agostinianos, em 1243, nas pegadas dos franciscanos, em 1209, em Assis e, logo a seguir, em 1216, dos frades dominicanos, fundados por Francisco de Assis e Domingos de Gusmão, respectivamente. 

    A surpresa deste conclave, dirigido pela inteligência (menos emocional que a do Papa anterior), revelou-se na entrega do comando da barca de Pedro ao missionário agostiniano, que trazia os sapatos gastos nas montanhas andinas ou por entre os rios, pouco governados, do Peru, obrigando-o também a calçar galochas e a ajudar as populações desprotegidas, sempre as mais fustigadas pelos desmandos da natureza e pela imprevidência humana. Este conclave foi, assim, visivelmente, seguido por quem esteve no terreno, por duas décadas, a fazer contas de matemática, deslocando-se a pé e a cavalo, de mãos abençoadas para acudir os corações tristes e aflitos, como se de um médico de família se tratasse ou se um mensageiro de Emaús lhes saísse ao caminho. 

    Sinodalidade, a revolução silenciosa 

    Como bispo de Chiclayo, D. Robert Prevost, assumiu a missão de acolher e integrar os imigrantes, assim como assistir no terreno as populações afetadas pelas cheias provocadas pelo El Niño em 2023. Foto: DR

    As decisões tomavam-se em Roma, por Francisco, no afã de ser útil a um projecto inovador. Estava posta em movimento uma verdadeira revolução silenciosa para que a Igreja Católica não mantivesse o atraso histórico de, pelo menos, duzentos anos, apontado pelo cardeal Martini, um jesuíta, arcebispo de Milão, desaparecido em 2012.  São evidentes agora os passos da estratégia romana. Prevost assume, entretanto, dupla nacionalidade. Norte-americano, por nascimento, em 1955, o padre Roberto, como era chamado, torna-se também peruano, em 2015. A nomeação para Superior-Geral dos agostinianos, dá-lhe, entretanto, mais mundo e visibilidade.

    Às montanhas peruanas chegou também, em 2014, a ordenação episcopal do padre Roberto, para a diocese costeira de Chiclayo, no norte do país, com 600 mil habitantes.

    Em 2023, Francisco, atento, chama a Roma o carismático missionário e nomeia-o presidente da Pontifícia Comissão para a América Latina e prefeito do Dicastério para os bispos. Era, avisadamente, o responsável-mor pelos novos líderes das dioceses católicas no mundo. Era esta a cadeia que o papa argentino não podia quebrar. O Espírito Santo, cumpria assim a sua missão acreditada de assistir esta corajosa proposta. Há dois anos que a marcha da Igreja de Pedro estava, subtilmente, em carris mais oleados…

    Escuta, Diálogo e Inclusão

    Assim pudemos observar que, até, durante a doença do Francisco, era visível a constante nomeação de bispos para todos os continentes. Leão XIV, de postura pastoral moderada, mas alinhado com Francisco, centra agora o seu projecto pontifical na escuta, no diálogo e na inclusão. Estas são as suas maiores preocupações sociais, bem como terçar armas pela paz mundial e por uma política integradora dos emigrantes. Noutras áreas, ficará a solicitação pelo diálogo intercultural e religioso, o lugar da mulher na Igreja, a lei do celibato e a momentosa questão climática.

    Leão XIV, o novo nome do papa, aponta para a Doutrina Social da Igreja do seu antecessor, Leão XIII (o mais velho dos pontífices), o papa da encíclica Rerum Novarum: “Faço novas todas as coisas”. Com esse texto, chegava ao discurso oficial da Instituição o cheiro do trabalho (Francisco fez chegar o cheiro a ovelha) e dos seus inalienáveis direitos, o socialismo e o capitalismo liberal, o sindicalismo e as lutas operárias.

    Pela primeira vez, a Igreja Católica sujava as mãos no fogo da revolução industrial que, no século XIX, criava novos escravos. Tal como a era digital de hoje poderá reduzir a ondas crematórias os seres humanos, assustadoramente, robotizados. E o que nos espera na incógnita da Inteligência Artificial? Estas são as angústias e os desafios de quem terá de edificar as pontes necessárias para o transbordo da esperança…

    Missionário católico, uma figura maltratada pela história?

    Há muito que a clássica figura do missionário não regressava aos ecrãs da modernidade. No entanto, foram ainda muitos os nomes que a história registou de homens e de mulheres que rasgaram continentes, passaram fronteiras, tomaram mesmo parte em episódios de história que se transformaram em libertação e progresso dos povos. 

      Após a morte de Francisco, os olhos do mundo estiveram postos na escolha do seu sucessor, Leão XIV, que continua o amor pela missão e pela América Latina. Foto: DR

      Referindo-me à história nacional, cito os nomes do franciscano António de Lisboa, e dos jesuítas, António Vieira, Manuel da Nóbrega, João de Brito e João da Silveira, entre outros.

      Actualizo a história recente com os nomes de António Barroso, Sebastião Soares de Resende e Manuel Vieira Pinto. António Barroso, bispo do Porto, missionário no século XIX, natural de Remelhe, Barcelos, que idealizou a Sociedade das Missões Ultramarinas (hoje, Sociedade Missionária da Boa Nova), privou, diversas vezes, com Leão XIII, pelas problemáticas que lhe levantaram a paralisia social e religiosa de Moçambique e da diocese de Meliapor, na Índia, onde foi também prelado.

      A eleição do missionário agostiniano vem sacudir definitivamente a nossa memória colectiva de um país comprometidamente missionário, envolto em longos pregões laudatórios. Por muitos anos, os missionários portugueses foram entregues ao compromisso político da Concordata e do Acordo Missionário de 1940, tornando-se, assim, colaboradores, nem sempre consentidos.

      Os missionários do nosso tempo são ainda, muitas vezes, tratados como se fossem seres de segunda condição eclesiástica, porque filhos de pobres, na sua maioria.

      Nas universidades foi esquecida a teologia da Missão. Nos próprios institutos missionários, os mais simples e os menos dotados tinham, muitas vezes, precedência no envio para as missões, de então. 

      Proselitismo, nunca mais!

      Leão XIV acaba de iniciar uma época nova na Igreja Católica, levando a uma dignidade “maior”, o serviço que estes homens e mulheres prestam à humanidade, onde quer que estejam. Mas vai-lhes ser, outra vez, clara a obrigação de não se socorrerem do proselitismo e, segundo o conselho explícito do papa Ratzinger, não poderão utilizar, nem mesmo as cores dos seus hábitos, para difundirem, como se de publicidade se tratasse, as mensagens de que são portadores. A Igreja portuguesa dispõe, actualmente, de 783 missionários, espalhados pelo mundo, sendo 284 homens e 439 mulheres. 

      É tempo de zarpar e levar, de novo, as águas lustrais do Baptismo, por caminhos novos, para um universo ainda mais vasto, unido pela diversidade, pela ousadia e pela mudança, que o Evangelho sugere. 

      Afinal, a sinodalidade de Francisco não é mais do que o cumprimento, ainda que tardio, do Concílio Vaticano II, o sonho do intrépido João XXIII, continuado pelo papa Montini /Paulo VI.

      Leão XIV: A primeira foto oficial de um papa a sorrir, ainda que discreto. Foto: Vatican Media