[A ARTE DIZ] – «Deus viu tudo o que tinha feito: era tudo muito bom» (Gn 1, 31)

Criação dos Animais, 1506-1511, Vasco Fernandes (ca. 1475-1542). Pintura a óleo sobre madeira de castanho, 171,9 x 86,4 cm. Museu de Lamego, inv. n.º 14. Foto: Museus e Monumentos de Portugal. Museu de Lamego. D.R.

(Eva Dias) – Em plena caminhada quaresmal, de olhos postos na celebração da Páscoa, cruzamos a liturgia da vigília pascal com o tema de reflexão proposto para este ano de itinerário celebrativo da Sociedade Missionária da Boa Nova, o Ano da Terra. A liturgia da Palavra inicia com a narração da criação, tomada do livro do Génesis (cf. Gn 1, 1 – 2, 2) e culmina com a ressurreição de Cristo (Mc 16, 1-7), descrevendo um arco temporal onde transparece a omnipotência de Deus, nos seus modos de agir divinos: Criador e Todo-poderoso, que liberta e salva. 

Atentemos particularmente na dimensão criadora de Deus. Diante do painel do pintor quinhentista português Vasco Fernandes, concebida para o retábulo-mor da Sé de Lamego, observamos Deus Pai no sexto dia da criação do mundo, quando «fez os animais selvagens, […] os animais domésticos, […] e todos os répteis da terra, segundo as suas espécies» (Gn 1, 25). Ocupando o lado direito da composição, Deus Pai revela-se como um ancião de dimensão supranatural, de cabelo e barba longos, de joelho no solo, com as mãos elevadas e palmas voltadas para fora, em ato criador, diante dos animais formados. A sua majestade é realçada pelas vestes purpúreas, cobertas por manto esvoaçante coral, e pela coroa imperial dourada, sobre a cabeça. O olhar mostra-se voltado para os animais do primeiro plano, destacando-se o cavalo branco, com os membros dianteiros em posição simétrica ao Criador. Em plano recuado, animais exóticos e fantásticos, confundem-se com a floresta, em plano de fundo, onde se vislumbram aves diversas, algumas em voo, recortadas do fundo azulado.

O livro do Génesis relata que Deus não terminou o sexto dia sem antes criar «o ser humano à sua imagem» (Gn 1, 27) e, somente quando o incluiu na obra criada, inferiu que «era tudo muito bom» (Gn 1, 31). A este propósito, o Papa Francisco destaca «a imensa dignidade de cada pessoa humana» (Carta Encíclica Laudato Si’, n.º 65). «Fomos concebidos no coração de Deus» (cf. Jr 1, 5), afirma, mas não podemos esquecer que a «terra existe antes de nós e foi-nos dada» (n.º 67). Deus entregou ao Homem o jardim do mundo «para o cultivar e, também, para o guardar» (Gn 2, 15). A par do trabalho do terreno, está a tarefa de «proteger, cuidar, preservar, velar», exigindo a existência de «uma relação de reciprocidade responsável entre o ser humano e a natureza» (n.º 67), uma vez que «não somos Deus» e é a Ele que a terra pertence (cf. Sl 24 [23], 1; Dt 10, 14). Simultaneamente, esta relação «implica que o ser humano, dotado de inteligência, respeite as leis da natureza e os delicados equilíbrios entre os seres deste mundo» (n.º 68). E apela: «somos chamados a reconhecer que os outros seres vivos têm um valor próprio diante de Deus» (n.º 69). Deste modo, não há «lugar [para] um antropocentrismo despótico, que se desinteressa das outras criaturas» (n.º 68). E cita: «cada criatura possui a sua bondade e perfeição próprias. […] As diferentes criaturas, queridas pelo seu próprio ser, refletem, cada qual a seu modo, uma centelha da sabedoria e da bondade infinitas de Deus» (Catecismo da Igreja Católica, n.º 339).

Assim sendo, ciente da magnanimidade de Deus, o ser humano é convidado a dar glória a Deus, como o salmista, perante tudo o que de bom e belo criou: «Bendiz, ó minha alma, o Senhor. Senhor, meu Deus, como sois grande! […] Tudo fizestes com sabedoria: a terra está cheia das vossas criaturas» (Sl 103 [104], 1. 24); «a terra está cheia da bondade do Senhor» (Sl 32 [33], 5).

Publicado na edição impressa de março de 2024.