
(Eva Dias) – A Sociedade Missionária da Boa Nova propõe, no itinerário para o seu centenário (1930-2030), um caminho de reflexão em torno das Bem-aventuranças. Cada etapa deste itinerário debruça-se sobre uma das sentenças de Jesus, proferidas no Sermão da Montanha. Terminado o Ano da Cruz (2023), o ano de 2024 apresenta-se como o Ano da Terra, tomado do versículo «Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a Terra» (Mt 5, 5). A presente rubrica associa-se a este itinerário, assumindo o desafio de apresentar aos seus leitores expressões da sensibilidade dos artistas nacionais como meio auxiliar para as reflexões em torno dos conceitos escolhidos a propósito do tema, como Mansidão e Ecologia, alargando o âmbito da sua análise para lá das obras de temática religiosa.
O tema da Terra reporta-nos, quase de imediato, para a ecologia e para a Carta Encíclica Laudato Si’, do papa Francisco, publicada em 2015. Ainda que os predecessores tivessem oportunamente aflorado a problemática ecológica, a novidade advém fundamentalmente pela visão global que o documento encerra. Este abre com as palavras que lhe servem simultaneamente de título, tomadas do Cântico das Criaturas de S. Francisco de Assis: «Louvado sejas, meu Senhor». E prossegue, mais adiante: «[…] pela nossa irmã, a mãe terra, que nos sustenta e governa e produz variados frutos com flores coloridas e verduras». Diz o papa Francisco, «a nossa casa comum pode-se comparar, ora a uma irmã, com que partilhamos a existência, ora a uma boa mãe, que nos acolhe nos seus braços» (n.o 1). A Terra é, deste modo, comparada a uma figura feminina, de quem provimos e com quem nos irmanamos, qual colo sagrado que nos gera e nos sustém. Porém, «crescemos a pensar que éramos seus proprietários e dominadores, autorizados a saqueá-la. […] Esquecemo-nos de que nós mesmos somos terra (cf. Gn 2, 7). O nosso corpo é constituído pelos elementos do Planeta […]. Nada deste mundo nos é indiferente». (n.o 2).
A obra de Querubim Lapa escolhida para acompanhar a reflexão insere-se no movimento neo-realista, uma das três correntes que integram a vanguarda artística do período pós II Guerra Mundial. À semelhança dos autores internacionais, os problemas sociais serviram de mote a diversas obras produzidas pelos artistas portugueses, numa crítica implícita ao regime do Estado Novo. Em Mulher chorando, Querubim Lapa revela a estilização figurativa característica desta fase pictórica da sua obra, numa figura feminina rígida, de corpo e membros alongados e robustos, com certa angularidade nos traços, acentuada pelas linhas do plano de fundo. De rosto quase coberto pelas mãos e pelo lenço, esta mulher sofre num choro mudo as vicissitudes da sua realidade que, no entanto, nos é desconhecida (uma perda? A fome? A incerteza do futuro?).
Não ficamos indiferentes perante a dor desta mulher, que poderia ser motivada, naquele momento histórico como na atualidade, por uma das muitas consequências da depredação da Terra: a deterioração da qualidade da vida humana e a degradação social. Mas esta dor pode também ser metáfora da dor da Terra, essa mãe e irmã que sofre as agruras pelas atitudes do seu filho e irmão amado. O papa Francisco desafia-nos, por isso, a «alimentar uma paixão pelo cuidado do mundo» (n.o 216), a «viver a vocação de guardiões da obra de Deus» não como «algo de opcional nem um aspeto secundário da experiência cristã, mas [como] parte essencial de uma existência virtuosa» (n.o 217). Nesta etapa do itinerário celebrativo, tenhamos presente que «no coração deste mundo, permanece presente o Senhor da vida que tanto nos ama […] e o seu amor leva-nos sempre a encontrar novos caminhos» (n.o 245).


