(Filipe Monteiro e Pe. Rui Ferreira) – A Revista Boa Nova visitou e esteve à conversa com o Vice-Presidente do Secretariado Diocesano da Pastoral da Saúde do Porto, Américo Lisboa Azevedo, que é um exemplo vivo de superação e de como as nossas chagas podem ser transfiguradas pelo Amor de Deus. Américo nasceu com paralisia cerebral e ficou totalmente cego aos 16 anos de idade, mas não desistiu de viver a vida como ela é. Com uma alegria e força contagiantes, partilhou connosco a sua história de vida, desde os desafios que teve de superar devido às suas limitações até ao momento em que percebeu que a sua missão era escutar e ajudar outras pessoas com deficiência a encontrarem a sua vocação, a acreditarem em si mesmas e a desenvolverem as suas capacidades colocando-as ao serviço de todos.

Américo Azevedo nasceu e vive em Gueifães, na Maia, Porto (1963). Veio ao mundo com paralisia cerebral acentuada e cego de um olho. Apesar de uma vida marcada pelas dificuldades, Américo encontrou o seu caminho pela dedicação de uma enfermeira que o escutou quando perdeu a visão completamente, na Páscoa de 1980. A partir desse momento, procurou servir os mais frágeis, combater os estigmas relacionados com a doença e levar o seu testemunho aos outros. Não sendo possível chegar a todo o lado, escreveu cinco livros, tem a ambição de publicar um sexto, e aceitou o desafio de um amigo que lhe propôs uma aventura pelos Caminhos de Santiago.
A infância e as primeiras dificuldades
As limitações começaram muito cedo a ser um desafio na vida de Américo. Nasceu três semanas mais tarde do que o previsto, sem visão no olho esquerdo e com muita falta de oxigénio, que resultou numa paralisia cerebral acentuada, diagnosticada quando Américo já tinha 6 anos, e que lhe atrapalha os movimentos, sobretudo do lado esquerdo do corpo. “Foi detetado porque na idade de eu levantar o pescoço, não levantava; nunca fazia nada que as outras crianças faziam, chorava imenso, não tinha nem dava sossego, e os meus pais começaram a percorrer médicos e médicos, mas ninguém sabia o que era. Houve um médico já muito mais tarde, que diagnosticou: tenho uma doença orgânica que provoca em si deficiência”, explica Américo.
Mas Américo não queria ficar limitado à sua doença e tentou desde criança superar as barreiras que lhe eram colocadas, contando com a ajuda dos amigos, que adaptavam as brincadeiras para que Américo pudesse participar: “Felizmente, durante a minha infância não tive grandes problemas, porque as crianças não têm preconceitos, não criam barreiras, até se entreajudam. Criavam sempre possibilidades e não barreiras”.

Sentiu que as dificuldades iam aumentar quando chegou a altura de entrar na escola e na catequese. “Na escola, não me deixaram entrar porque não tinham condições para uma pessoa como eu frequentar a escola regular. Na catequese, o padre achou que eu não tinha necessidade de fazer a catequese, porque já sofria que chegasse e não tinha de ser mais castigado”, diz Américo, lamentando a mentalidade que alerta ainda hoje existir: “Não há tanto, mas ainda há”. A decisão do padre deixou Américo desconsolado, que confessa que só queria ir para a catequese para estar com os amigos: “Eu não queria ir para a catequese para aprender a catequese, porque eu não ligava nada às coisas de Deus; eu não conhecia Deus.”
Impedido de frequentar a catequese e a escola regular, Américo foi arrancado das suas raízes aos 10 anos para ingressar no Centro de Reabilitação de Paralisia Cerebral, em Lisboa, onde a adaptação a um mundo completamente diferente se tornou a sua maior adversidade: “Saí de uma aldeia para uma cidade aos 10 anos, e fui sem ninguém. O meu pai foi me levar, fiquei entregue aos cuidados de uma senhora que cuidava de mim à noite e de dia ia para o Centro.” Entretanto, a experiência no instituto não se revelou positiva por não conseguir comunicar com os colegas, que tinham grandes dificuldades cognitivas: “Não me sentia integrado”. Habituado a “brincar com tudo e com todos”, sem nunca se sentir rejeitado ou ser visto como uma pessoa diferente, Américo não se sentia bem ali. Em Lisboa, também entrou para a catequese, mas continuava sem querer ir: “Para mim, tudo o que a catequista dizia eram balelas, porque eu achava que Deus não existia tal como diziam que existia”, conta o homem de 61 anos.
Após o 25 de abril de 1974, a integração de alunos com deficiência no ensino regular tornou-se obrigatória, e Américo voltou para a sua terra natal com 12 anos para concluir o ensino primário e contrariar o receio dos professores, que tinham medo de que os outros alunos não o aceitassem: “Aquilo era uma festa. Eles queriam era brincadeira, queriam conhecer uma pessoa como eu”. Américo confessa que não se esforçava na escola e, apesar de nunca ter reprovado, passou sempre com notas médias, um traço que se estendeu até à preparatória em São Mamede de Infesta e ao ensino secundário na Maia.
A enfermeira Caridade e a escuta ativa
A Páscoa de 1980 trouxe mais uma dificuldade à vida de Américo, pois entre a entrada e saída da Cruz, em sua casa, no “Compasso”, perdeu a visão do olho direito: “Já estava com algumas dificuldades, a notar alguma deficiência na visão, e comecei a ver manchas. Foi muito rápido”. No dia seguinte, foi para as urgências e ficou internado no Hospital de S. João, no Porto, durante quatro meses, onde as questões existenciais se tornaram mais intensas, com um descolamento completo da retina.

O infortúnio aumentou o ceticismo de Américo, que não via Deus como alguém capaz de curar. Apesar de ouvir os outros enfermos a rezar, continuava sem conseguir acreditar em Deus. “Se põe o coxo a andar e o cego a ver, porque é que eu não ando? E, entretanto, via amigos meus a ficaram doentes, outros a morrerem, ainda jovens. Então, se Deus é tão bom, porque é que as pessoas morrem tão cedo? Porque é que sofrem? Porque é que não cura essas pessoas?”, questionava-se Américo. Procurava saber o porquê do que lhe acontecera e como seria daí em diante, mas sempre sem respostas.
Uma noite, no meio dessa turbulência, sentiu que alguém se tinha sentado ao lado da sua cama e permanecido sem dizer nada. Perguntou quem era e o que estava ali a fazer e uma enfermeira respondeu-lhe simplesmente que o estava a contemplar. Américo confessa que não gostou nada da resposta e atirou-lhe que precisava era que o ajudassem. A enfermeira perguntou-lhe o que é que ele precisava, e ele respondeu que precisava que o escutassem. A enfermeira escutou-o durante horas, numa conversa que se estendeu até de madrugada. “Chorei, gritei, disse o piorio de Deus, e aquela boca sagrada nunca me reprimiu. Nunca me disse nada. No final eu estava exausto, ela exausta estava. E eu sentia que ela me estava a escutar, sentia que ela me tocava com a mão, sentia que era uma escuta ativa, não estava a fazer que escutava. No final, fiquei muito calmo, dormi que nem um anjo, e ela foi à vida dela”, conta Américo.
Essas conversas continuaram e ao fim de algumas noites, o homem sentia-se livre, com o coração vazio de rancores, medos e angústias. Percebeu que Deus estava naquela enfermeira, a quem chama Caridade: “Aquele Deus que eu procuro é este que ela me anunciou. Deus feito amor. Que está atento às necessidades do outro. Não cura fisicamente, mas ajuda a purificar-nos por dentro. A libertar-nos. A sentir-me melhor. A ser melhor com os outros. A darmo-nos aos outros. Este foi um processo mais demorado, não foi rápido”.
Apesar do cansaço de estar no hospital, chorou quando teve alta, porque sentia que deixara ali uma parte da sua vida e que saía diferente. No regresso a casa, começou a receber visitas das vizinhas que vinham desabafar os seus problemas com Américo. Começou, então, a perceber o efeito positivo que a sua escuta ativa tinha sobre as outras pessoas: “Elas vinham ver-me, mas era para escutar que eu ali estava”.
Propôs-se ir à Igreja e oferecer-se ao serviço da paróquia, mas o padre respondeu-lhe que não tinha lugar para ele. Entretanto, na escola, continuava a brincar com os colegas, sensibilizando-os a olhar para a vida e para os sonhos das pessoas com deficiência: “No fundo, sem saber, estava a evangelizá-los”.


