Comunicação e Inteligência Artificial: Oportunidades e Desafios

Uma das áreas onde os sistemas da chamada «inteligência artificial» mais se fazem notar é o das comunicações sociais. Para nos ajudar a refletir sobre a revolução em curso, com as suas oportunidades e desafios, convidámos o jornalista Octávio Carmo, chefe de redação da Agência Ecclesia. Na Mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais (12 de maio), face à inteligência artificial (máquina), o Papa Francisco convida-nos a buscar a sabedoria do coração (própria e exclusiva do ser humano), para juntos encontrarmos respostas que nos ajudem a orientar os sistemas de inteligência artificial para uma comunicação plenamente humana.

Foto: ©L’Osservatore Romano

Octávio Carmo, jornalista (Agência Ecclesia) – Conhece-te a ti mesmo. Inspirado pela sabedoria grega, perguntei a um chatbot como é que ele definiria esta questão. “A Inteligência Artificial (IA) é um ramo da ciência da computação que se concentra no desenvolvimento de máquinas e software com capacidade de inteligência. Isso significa que eles podem aprender, raciocinar, perceber, compreender a linguagem, e resolver problemas de maneira semelhante aos humanos”.
A questão da semelhança é fundamental na mensagem do Papa para o Dia Mundial das Comunicações Sociais de 2024. Francisco admite que as máquinas têm uma capacidade “imensamente maior” que os seres humanos de memorizar os dados e relacioná-los entre si. O problema de fundo é outro: “compete ao homem, e só a ele, descodificar o seu sentido”.
“Não se trata, pois, de exigir das máquinas que pareçam humanas; mas de despertar o homem da hipnose em que cai devido ao seu delírio de omnipotência, julgando-se sujeito totalmente autónomo e autorreferencial, separado de toda a ligação social e esquecido da sua condição de criatura”, alerta o Papa.
O texto vem em linha com as preocupações do atual pontífice para a promoção de uma comunicação humana, que valorize o outro e nasça do coração. Este ano, Francisco pede um “olhar espiritual” e uma “sabedoria do coração” para poder ler e interpretar a novidade do nosso tempo e descobrir o caminho para uma “comunicação plenamente humana”.
Posto isto, de onde vem a preocupação com a IA? Discutir cenários hipotéticos parece uma perda de tempo e uma distração das questões que realmente importam no presente. Entendo, porém, que existe uma obrigação moral da nossa parte, com as gerações futuras, de antecipar questões e cenários, para iniciar reflexões que permitam a construção de um quadro ético onde o desenvolvimento de tecnologia aconteça num horizonte de respeito pela dignidade humana.

Também o papa Francisco foi alvo de manipulação da imagem com recurso a inteligência artificial. As imagens do sucessor de Pedro com blusão branco tornaram-se virais na internet em março de 2023. Foto: ©Forbes Tech

Falei, numa conferência a este respeito, numa espécie de “IKEA-Logia”, a respeito da IA. A democratização do conhecimento, da criatividade – e eu que desenho tão mal, de repente, com novas possibilidades para me exprimir – fascinam, mas abrem questões. Desde logo, as leis e o esforço de regulação respondem “desejo genuíno de proteger os mais frágeis ou apenas conservar monopólios ou elites?”. Qual é o lugar da criatividade? Qual é o lugar na alma do que é especificamente humano? Qual é a capacidade de criação de conhecimento para que ele não seja mera repetição do seu passado? Quem vai questionar esse desenvolvimento se ele for entregue meramente à inteligência artificial, que se baseia no conhecimento adquirido e não nas possibilidades inauditas do futuro?
Como bem diz Francisco, não podemos permitir que os algoritmos limitem ou condicionem o respeito pela dignidade humana. Recordo, a este respeito, o “Apelo à Ética” da IA, um documento assinado pela Pontifícia Academia para a Vida, a Microsoft, a IBM, a FAO e o Ministério da Inovação, uma parte do Governo italiano, em Roma, a 28 de fevereiro de 2020, para promover uma abordagem ética à inteligência artificial. A ideia subjacente é promover um sentido de responsabilidade partilhada entre organizações internacionais, governos, instituições e o sector privado, num esforço para criar um futuro em que a inovação digital e o progresso tecnológico concedam à humanidade a
sua centralidade.
Há uma consciência de mudança – tecnológica, antropológica, económica, social, política, ambiental. Sempre foi claro e agora parece ser mais evidente do que nunca: é preciso mudança para que exista futuro.

O documento «Call for an AI Ethics» [Apelo por uma Ética da Inteligência Artificial] foi assinado em 28 de fevereiro de 2020 por Dongyu Qu, diretor geral da FAO, Brad Smith, presidente da Microsoft, D. Vincenzo Paglia, presidente da Pontifícia Academia para a Vida, promotora da iniciativa, Paola Pisano, ministra da Inovação Tecnológica da Itália, e John Kelly III, vice-presidente da IBM. Foto: romecall.org


Aqui, o ponto de partida é fundamental: o futuro já chegou e é habitado por uma inteligência artificial, mas não quero ser excessivamente pessimista nem cair no discurso da desumanização, face à crescente tecnologização da realidade. Desenvolvimentos na área da saúde, por exemplo, apontam a este novo futuro, nas suas utopias e distopias, que exigem preparação ética, para que seja uma conciliação, não um combate ou um confronto. Estamos diante da “desconstrução” da modernidade e da transformação da nossa realidade: não basta repetir fórmulas do passado.
A IA pode abrir caminhos para um mundo que se reencontra mais humano na tecnologia que aparentemente o desumanizava. Um mundo que acolhe todos aqueles que, criativamente, estão a reler este momento em que o futuro chega às nossas vidas, que ainda são também presente e passado. E tudo o que podem ser, mesmo que nunca o tenhamos imaginado.
Com isto não quero, por outro lado, ignorar os grandes desafios que se nos colocam: no mundo das redes sociais, as formas de mediação tradicionais e as instituições são vistas cada vez mais como espaços em que há “algo a esconder”, interesses ocultos, jogos de poder…
Já a “informação” que chega pelo “tio do Whatsapp”, como diriam os nossos irmãos brasileiros, essa sim, é pura e desinteressada. Cada vez mais a “realidade” (sempre parcial) chega sem filtro, sem necessidade de mediadores, numa atitude que é até glorificada como um ato de insubordinação e libertação face às formas mais tradicionais da Comunicação Social.
Esta avalanche de dados, sem qualquer tratamento, muitas vezes carecida de qualquer veracidade, é um grande desafio. Para os jornalistas e para as instituições. Vivemos um tempo difícil, no campo mediático, em que a mera “aparência de verdade” é mais do que suficiente para quem acredita apenas naquilo que quer acreditar – ignorando pura e simplesmente princípios tão básicos como a verificação da informação.
O que o jornalismo humano tem de diferente da IA é a capacidade de colher o intangível. Faz ainda mais sentido para quem é crente, acredito. A lógica do algoritmo é apresentar o que é confortável para maioria das pessoas, para a bolha a quem ela se destina, mas o que nos distingue como humanos passa
pelo que não se vê e o que não se mede.
O amor, o coração, o que nos faz iguais nas dores de cada dia é um desafio que não pode ser artificializado e convoca a comunicação desde o mais íntimo de cada um. A esse respeito, entendo que a perda do sentido de comunidade, alimentada pela IA, é efetivamente um dos maiores perigos que é possível identificar.
A hipervelocidade mediática, em tempos de exposição constante, arrasou um fundamento central da existência: a incompletude. Comunicamos não só por querer partilhar, mas também para encontrar algo do que nos falta, para nos completarmos.
Com ou sem tecnologias revolucionárias, a questão de fundo é sempre antropológica e não técnica. A comunicação é humana, acima de tudo. É isso que o Papa nos recorda, com a sua sabedoria do coração.