(Doutora Rute Agulhas, Psicóloga, coordenadora do Grupo VITA) – Ser criança é belo, mas simultaneamente frágil. Tal fragilidade reclama uma cultura de cuidado que proteja o crescimento harmonioso e integral. Estima-se (por defeito!) que, na Europa, uma em cada cinco crianças são vítimas de alguma forma de violência sexual. Em Portugal, esta “chaga” tem aumentado de ano para ano e o mundo digital representa um perigo crescente para as crianças. Aqueles que deveriam ser os primeiros a cuidar e proteger – familiares e conhecidos – são os que mais abusam. Apesar do escândalo, possivelmente sobredimensionado pelos meios de comunicação social, a Igreja Católica tem feito um caminho «pioneiro no nosso país, que poderá ser entendido como um modelo a seguir por outros quadrantes da sociedade». É nesse sentido que trabalha o Grupo Vita, coordenado pela doutora Rute Agulhas, autora do artigo que apresentamos.

O abuso sexual de crianças é considerado um problema de saúde pública, transversal e global, na medida em que revela uma elevada prevalência em todos os países do mundo, independentemente do seu nível de desenvolvimento, bem como um impacto negativo, a curto, médio e longo prazo.
Na Europa, estima-se que uma em cada cinco crianças seja vítima de alguma forma de violência sexual. Uma estimativa que, seguramente, peca por defeito, atendendo às cifras negras, ou seja, a todas as situações que nunca foram reveladas e que permanecem sem notificação. Existem, portanto, muito mais situações de abuso sexual do que aquelas de que temos conhecimento.
Este fenómeno de subnotificação pode ser ilustrado com a metáfora do funil (adaptado de Miller-Perrin & Perrin, 2013), que representa a diferença muito significativa entre os casos que poderão existir, aqueles que são reportados e avaliados e, ainda, os que são efetivamente confirmados.

- Nível 1 – todos os casos de abuso sexual que existem, e que são desconhecidos;
- Nível 2 – os casos que chegam ao conhecimento dos profissionais, nomeadamente, das áreas da saúde e da educação;
- Nível 3 – os casos que são encaminhados para os serviços especializados;
- Nível 4 – os casos que são avaliados pelos serviços especializados, e
- Nível 5 – os casos que, após um processo de avaliação, são confirmados.
Em Portugal, os dados relativos aos crimes de natureza sexual sobre crianças revelam uma realidade preocupante, que cresce ano após ano. Os crimes sexuais cometidos através das plataformas digitais têm também aumentado de uma forma significativa, com um pico de casos durante a pandemia de COVID-19 – o crime de pornografia de menores representava, em 2014, 9% do número total de crimes sexuais contra crianças, aumentando para 47,2% em 2020 e passando, depois, para 25,2% em 2021 e 15,3% em 2022.
Os dados disponíveis permitem-nos ainda afirmar que estes crimes são sobretudo praticados no seio da família ou por pessoas conhecidas, com quem a criança mantém uma relação de confiança e proximidade. As vítimas são, na sua maioria, do sexo feminino, com idades compreendidas entre os 8 e os 13 anos de idade – observando-se, desde há alguns anos, um aumento, ainda que discreto, das situações cometidas contra crianças em idade pré-escolar (em 2022, 4,7% das vítimas tinham entre 4 e 6 anos de idade). As pessoas que cometem estes crimes são predominantemente do sexo masculino e dos escalões etários 31-40 e 41-50 anos.
O combate a esta realidade exige uma visão estratégica com políticas globais e holísticas que apostem: a) em campanhas de sensibilização e consciencialização sobre esta problemática; b) em medidas preventivas de caráter universal e, c) no reforço de estratégias de intervenção que visem ajudar, não apenas as vítimas de abuso sexual, como também as suas famílias e toda a comunidade onde estão inseridas.
Apesar de o contexto da Igreja não ser aquele onde predominam as situações de abuso sexual, a Igreja Católica em Portugal [ICP], em linha com as recomendações provenientes de Roma desde há alguns anos, tem vindo a dar passos importantes que lhe permitam melhor conhecer, prevenir e intervir perante esta realidade. Assim, e após a criação, que se iniciou em 2019, das Comissões Diocesanas para Proteção de Menores e Adultos Vulneráveis, a ICP pediu depois um estudo detalhado sobre os abusos sexuais no seu seio. Conhecidos os resultados – preocupantes – deste estudo inicial, decidiu, de forma imediata, pela criação de um grupo executivo com a missão de acolher, escutar, acompanhar e prevenir as situações de violência sexual de crianças e adultos vulneráveis no contexto da IGP.
Surgiu assim o Grupo VITA (www.grupovita.pt), em funções desde maio de 2023, focado no processo de reparação do passado, olhando para o presente e prevenindo o futuro. Significa isto que é necessário atender às necessidades das vítimas e assegurar que recebem toda a ajuda de que precisam e, ao mesmo tempo, criar uma cultura de cuidado e proteção, onde todos possam sentir-se seguros.
A ICP tem dados passos muito importantes, desde logo permitindo-se abordar este tema – ainda tabu – de uma forma clara e objetiva, condenando qualquer forma de encobrimento ou ocultação. Toda a comunidade eclesiástica tem vindo a revelar disponibilidade para refletir sobre esta problemática e para repensar a forma como pode organizar-se, caminhando no sentido de garantir a todos uma Igreja que saiba prevenir, identificar e sinalizar qualquer situação de violência sexual contra crianças e adultos vulneráveis.
Ao traçar este caminho, a ICP tem vindo a assumir um papel verdadeiramente pioneiro no nosso país, que poderá ser entendido como um modelo a seguir por outros quadrantes da sociedade. Focada em ajudar as vítimas e em criar ambientes protetores norteados por códigos de conduta que orientem os modos de atuação por parte de todos, a ICP aceitou ainda o desafio de desenvolver programas de prevenção primária para crianças e jovens, atualmente em fase de desenvolvimento, e que serão aplicados em diversos contextos eclesiásticos.
Neste contexto, o Grupo VITA elaborou um Manual de Prevenção da Violência Sexual contra Crianças e Adultos Vulneráveis no contexto da Igreja Católica em Portugal, que sistematiza as principais orientações a seguir em matéria de prevenção e intervenção.
Todos juntos, podemos contribuir para uma Igreja mais acolhedora, atenta e segura.


