D. Rui Valério: “Há uma sede desta reconciliação, há uma sede da misericórdia”

(Pe. Rui Ferreira) – D. Rui Valério, Patriarca de Lisboa, desde setembro de 2023, nasceu, em 1964, na Freguesia de Urqueira, Concelho de Ourém, Diocese de Leiria-Fátima. Membro da Sociedade dos Missionários Monfortinos, foi Pároco de Castro Verde (Beja) e da Póvoa de Santo Adrião (Lisboa) antes de ter sido nomeado Bispo das Forças Armadas e de Segurança pelo Papa Francisco, em 2018. 

«A esperança é verdadeiramente filha da misericórdia», pois, tal como a misericórdia, remete-nos para as entranhas maternas. «E a mãe é sempre princípio de vida (…) nova [que] dá motivo, dá luz, dá impulso, exatamente à esperança. Para um novo começo». Foto: Patriarcado de Lisboa

Em 2016, no Jubileu Extraordinário da Misericórdia, foi escolhido e enviado pelo Santo Padre como um dos 1.071 “Missionários da Misericórdia”, instrumentos do que de mais belo, intenso e maravilhoso está em Deus, que é a Sua misericórdia. Esta missão, que D. Rui Valério considera um grande privilégio e, pela qual, ainda hoje, vive profundamente agradecido, foi o principal motivo da nossa entrevista, no Ano Santo da Esperança e nas vésperas do Jubileu dos Missionários da Misericórdia (28-30 de março, Roma). 

Missionários da Misericórdia

Boa Nova (BN): Em 2016, no Jubileu da Misericórdia, o, então, padre Rui Valério foi um dos 1.071 Missionários da Misericórdia, escolhidos e enviados pelo Papa Francisco. Como acolheu e experienciou esta missão? 

D. Rui Valério (DRV):  Em primeiro lugar, com uma disponibilidade total, consciente que estou para servir e não para fazer a minha vontade. Em segundo lugar, foi com uma enorme e imensa alegria, porque é um privilégio ser chamado. E é um privilégio maior ser chamado para uma missão, em que vamos testemunhar, em que somos meros mediadores do que de mais belo, intenso, maravilhoso, está em Deus e está no coração de Deus, que é Pai Misericordioso, que é a Sua misericórdia. De facto, nada de mais importante existe que é a própria misericórdia de Deus. Misericórdia que em Cristo se fez carne, gesto e perdão. Perdão que, em Cristo, assumiu a forma de uma vida que se dá pelos outros. A pessoa perdoada é uma pessoa a quem se concede vida doada. 

BN: Quais as experiências mais marcantes como Missionário da Misericórdia e de que forma modelaram a sua forma de estar, sentir e agir até à atualidade?

DRV:  O grande desafio foi aquela nossa capacidade humana de albergar, de nos sintonizar com um coração verdadeiramente desconcertante, como foi aquele coração de Deus. Tive a ocasião de percorrer, com os penitentes, caminhos verdadeiramente impensáveis, do ponto de vista humano, de uma eventual recuperação. E, no entanto, senti, contemplei, constatei, que por muito tortuoso, abismal, dramático, que fossem as estradas percorridas por essas pessoas, era impressionante como Deus perdoa. E Deus perdoa sempre! O desafio foi como, na mesquinhez dos meus critérios, na minha pequenez, albergar uma imensidão tão grande de amor e de misericórdia. Na altura, aquilo que começou a existir em mim, e que permanece ainda hoje, é a consciência de que o que mais dignifica o ser humano é esta dádiva de que é possível recomeçar. 

Naquele ano, 2016, comecei uma vez por mês a ir ao encontro de pessoas sem-abrigo, juntando-me a grupos já organizados, que iam para as avenidas da cidade [de Lisboa] distribuir alimentos, roupa, medicamentos. Eu ia com estas pessoas para escutar e, eventualmente, para propor uma reconciliação, uma celebração do sacramento. Esse projeto permanece ainda hoje. A partir desses encontros da misericórdia, por detrás daquele rosto sofrido, desgastado, abatido, tantas vezes, com aparências de quem foi explorado, é tocante descobrir que há ali uma pessoa, com uma história, com sentimentos, com planos, com anseios, com sonhos, mas também com dramas imensos. Isso toca-me profundamente. 

Depois, logo na ocasião em que fomos a Roma, para receber diretamente das mãos do Santo Padre este mandato, fascinou-me muito também o que lá escutei, da parte de outros Missionários da Misericórdia, sobre a maneira e os quilómetros que eles tinham de percorrer para chegar aos lugares mais inalcançáveis do planeta, para aí organizarem celebrações de reconciliação. 

A experiência que mais me marcou – uma delas! – foi umas três semanas, sensivelmente, que estive nos Estados Unidos ao encontro das nossas comunidades portuguesas, enquanto Missionário da Misericórdia. Isso fascinou-me muito, sobretudo por ter feito a experiência de que as pessoas vivem uma autêntica sede de misericórdia. Cheguei a confessar pessoas que tinham feito 450 quilómetros para virem reconciliar-se ao Missionário da Misericórdia. Há uma sede desta reconciliação, há uma sede da misericórdia. E, portanto, foi uma página da história da minha vida que me emociona e, ainda hoje, eu elevo ao Senhor um agradecimento alto, profundo, incondicional, por essa graça que me concedeu.

Nos E.U.A, D. Rui Valério confessou quem percorresse mais 450 Km para ir ao seu encontro: «as pessoas vivem uma autêntica sede de misericórdia». Foto: Patriarcado de Lisboa

“Aquilo que começou a existir em mim, e que permanece ainda hoje, é a consciência de que o que mais dignifica o ser humano é esta dádiva de que é possível recomeçar. “

BN: Há como que uma ponte direta entre o Jubileu da Misericórdia e este Jubileu da Esperança?

DRV: Completa. Aliás, a esperança é verdadeiramente filha da misericórdia. Porque a esperança, mesmo do ponto de vista linguístico, como a misericórdia, nos remete para o coração de Deus, que é “rahamîm”, que [no hebraico] são as entranhas da mãe; e a mãe é sempre princípio de vida. E, assim, este princípio de uma vida nova dá motivo, dá luz, dá impulso, exatamente à esperança. Para um novo começo. 

BN: Como ser missionário da misericórdia no dia-a-dia? Como ser hoje um instrumento eficaz da misericórdia de Deus?

DRV: O missionário da misericórdia é aquele que começa por oferecer ao outro a atenção, a escuta, a disponibilidade de o ouvir. Porque, nessa escuta, nós não só abrimos espaço dentro de nós para acolher o outro, mas nessa escuta se elabora a gramática de compreensão daquilo que ele está a viver e daquilo que ele fez. E do porquê que fez assim. É um acolher o outro em nós próprios com a sua história, os seus dramas, os seus fracassos, os seus insucessos, as suas incoerências. É a partir disto que resulta uma sabedoria da compreensão daquilo que ele viveu e que depois ele fez. Foi o que Jesus fez. Jesus coloca-se sempre numa atitude de escuta. Só é possível sermos veículos do perdão e da misericórdia que Deus concede ao outro, na medida em que começarmos por criar espaço em nós para ele, porque só assim é que há também espaço para que a misericórdia de Deus flua pelos nossos gestos, pela nossa palavra, pelos nossos sentimentos e chegue ao outro. E sacramentalmente ainda mais em profundidade.

BN: É uma capacidade que, nos dias de hoje, muitas vezes, não é fácil encontrar?

DRV: Eu creio que não é fácil encontrar, mas por isso é que há sacerdotes. E os sacerdotes devem ser artesãos da misericórdia de Deus. Artesãos da escuta, da palavra, do acolhimento e da disponibilidade. 

“A esperança é verdadeiramente filha da misericórdia.”

BN: O que pode a Igreja fazer mais e melhor para ser esse sinal eficaz da misericórdia divina? 

DRV: Uma vez mais, só quero enfatizar este aspeto. Verificamos este encontro, coerência e continuidade entre o Jubileu da Misericórdia e a sinodalidade. Uma das palavras-chave do Documento Final sobre a sinodalidade é a palavra do escutar, do ir ao encontro, do ouvir, da atenção prestada a todos nesta abertura. E, nesse aspeto, eu diria que uma Igreja sinodal é uma Igreja onde existe mais sentido para a misericórdia.

BN:  Através da escuta! 

«Para os jovens e com os jovens, somos chamados a ser Igreja missionária e em saída, levando no coração o ardor de chegar a todos» (Mensagem à amada Igreja de Lisboa, 10 de agosto de 2023, aquando da sua nomeação). Foto: Patriarcado de Lisboa

DRV:  E da esperança. 

BN:   A misericórdia de Deus é para todos, sem exceções e sem excluir ninguém. Mas como, humanamente, conjugar a misericórdia com a justiça? 

DRV:  Primeiro, entre justiça e misericórdia existe complementaridade. Existe continuidade; não oposição. Segundo, a justiça olha preferencialmente para o ato, para a ação praticada e para as suas consequências, em termos de culpa e de inocência. A misericórdia coloca-nos face a face com a pessoa, tende a olhar mais para as pessoas no seu todo e para a pessoa toda. Terceiro, a justiça quer auxiliar a misericórdia, como a misericórdia quer ser auxílio à justiça. Assim, quando a justiça lida também com prazos, a justiça prática, a misericórdia não tem prazos. A misericórdia é transversal, também temporalmente.

BN:   Como experienciou na sua própria vida a misericórdia de Deus?

DRV: Sobretudo pela gratuidade do perdão que Deus me concedia, eu descobri o próprio coração paterno de Deus. A nossa cultura, e também a nossa formação, incute-nos sempre o princípio de que a cada erro segue um castigo, a cada falha segue uma consequência, que normalmente é punitiva para quem a pratica. No caso da misericórdia, dá-se a experiência de um amor e de um perdão incondicional. A fonte da misericórdia de Deus é o amor incondicional do Pai. Deus perdoa-me e a condição que Ele me coloca é a posteriori. Então não voltes a pecar! Então vai e perdoa também o teu irmão! Ou seja, a misericórdia é realmente a epifania daquele amor transbordante e criativo de Deus logo no princípio, em que aquilo que nos é pedido é esta novidade de vida. Por isso, ser “misericordiado” – para usar uma palavra do Papa Francisco – significa, para mim, receber a graça de ser um novo homem e passar a viver uma vida nova. Uma vida cujo alicerce e o fundamento já não é o meu eu, mas é Deus. 

O restante do 1º Plano pode ser lido na versão impressa da Revista Boa Nova de março 2025. Faça já a sua assinatura.