(Pe. Tiago Tomás, missionário no Japão) – Por ocasião da celebração dos 10 anos do pontificado do Papa Francisco, propus aos nossos leitores uma interpretação missionária, a partir da Ásia, do seu pontificado. Agora, proponho o desafio missionário de alguns dos gestos e palavras mais marcantes do Papa Francisco. Pretendo partilhar uma pequena reflexão à volta do impacto do anúncio, durante a JMJ de Lisboa, que indicou Seul, capital da Coreia do Sul, como o local da realização da próxima JMJ. A relevância deste anúncio tem a ver também com o facto de fazer retornar este evento à Ásia, 31 anos depois da JMJ de Manila (1995), nas Filipinas.

próxima JMJ se irá realizar em Seul, em 2027. Foto: Jesus Huerta/Flickr JMJ Lisboa 2023
Por estes lados, entende-se que a escolha de Seul não se trata apenas de uma mera ca-
sualidade ou coincidência, mas expressa muito o estilo de fazer missão do Papa Francisco. Parece-me que o Papa tem tentado sugerir à Igreja que seja missionária fazendo-se próxima e inclusiva. A inclusão é a atitude de acolher e valorizar a diversidade humana, sem discriminar ninguém por motivos de raça, cultura, religião, sexo, idade, deficiência ou condição social. Francisco defende uma Igreja missionária inclusiva, que seja “casa de todos” e que saia ao encontro das periferias existenciais, onde se encontram os mais pobres e marginalizados. Eu creio que a escolha de Seul volta a reforçar os traços deste rosto missionário que o Papa Francisco deseja que a Igreja tenha. Quem atentamente acompanha as diferentes intervenções do Papa Francisco apercebe-se claramente que
quer os seus gestos, quer as suas palavras apontam exatamente para este seu sonho.
Em dez anos de pontificado Francisco fez mais de 50 viagens. Visitou quase todos os continentes, com exceção da Oceânia. Dos E.U.A. à Argentina (América), de Portugal à Hungria (Europa), de Marrocos a Moçambique (África), e dos Emirados Árabes Unidos à Mongólia (Ásia), vemos um Papa expressando o rosto missionário da Igreja que se tem feito próxima a todas as pessoas que vivem nas diferentes latitudes do mundo. Do mundo de longa tradição cristã ao de um cristianismo nascente, do mundo predominamente islamizado aos espaços predominantemente cristianizados, vemos a presença deste rosto missionário itinerante da Igreja que se procura fazer próxima em todos os lugares onde os grandes problemas da humanidade se colocam.
Poderia ser mínimo pensar a proximidade e inclusão sonhadas por Francisco se apenas olhássemos para as suas viagens pelos diferentes países. Creio que os grandes esforços de reforma que tem levado a cabo no interior da Igreja tentam espelhar isto mesmo. Vejo a criação do núcleo de cardeais conselheiros, provenientes de diferentes continentes, como representantes dos mesmos; as estruturais reformas na cúria romana como orientadas à Evangelização; a nomeação de leigos e mulheres para altos cargos nos dicastérios romanos e, finalmente, a convocação de um sínodo cujo o tema é sinodalidade constituem um sinal expressivo do tipo de Igreja missionária que Ele sonha: próxima e inclusiva.

Para além dos gestos, também as suas palavras sugerem este seu desejo de proximidade e inclusão que acima referimos. Sobretudo existe uma palavra específica que ele usa com muita recorrência, trata-se da palavra “Todos”. Nos documentos do Papa Francisco traduzidos em português, esta palavra ocorre cerca de 1023 vezes. É minha convicção que ela não só expressa o pensamento do Papa, mas também o seu sentir, as suas preocupações e pode esclarecer o seu modo de proceder. Na Exortação apostólica Evangelii Gaudium (2013), na qual são apresentadas as grandes linhas programáticas do seu pontificado, a palavra é usada 63 vezes. Esta palavra é utilizada não só para referir o universal alcance da missão evangelizadora da Igreja “que deve ser capaz de se aproximar de todos e preferencialmente das periferias existenciais”, mas também para enfatizar a comunhão entre todos os membros da Igreja que devem ser solidários, fraternos e participativos.
Dois anos após a sua eleição, na convocação do jubileu extraordinário da Misericórdia, inaugurado em Bangui e não em Roma, como era habitual, o Papa publicou a Bula Misericordiae Vultus, onde arrasta para o centro da vida da Igreja todos os descartados deste mundo. Neste documento, a palavra “todos” ocorre mais de 60 vezes.
Na Encíclica Laudato Sì (2015), que convida a um olhar integral sobre as relações entre os homens, entre os povos e a Criação, a palavra “todos” ocorre em mais de 149 vezes. Na Exortação apostólica Amoris
Laetitia (2016), “o evangelho da misericórdia para as famílias”, “todos” ocorre quase a mesma quantidade de vezes que na Laudato Sì. Na Exortação apostólica Christus vivit(2019), que sucede à Gaudeteet exsultate (2018), o próprio Papa faz questão de sublinhar que quando se refere à juventude não se refere àquela “classicamente” católica ou cristã mas a toda juventude do mundo. Neste documento, a palavra “todos” aparece pelo menos 59 vezes. O Documento de Abu Dhabi sobre a fraternidade humana (2019), pelo qual o papa volta a exortar o “cultivo de uma a cultura do diálogo como caminho, a colaboração como conduta e o conhecimento mútuo como método e critério”, a palavra todos aparece 59 vezes. No Motu Vos estis lux mundi (2019), fala do necessário empenho de todos na promoção da cultura de cuidado e de responsabilidade, sobretudo no que diz respeito ao tratamento dos casos dos abusos cometidos na Igreja. A Encíclica Fratelli tutti (2020), onde o Papa desafia a todos a colocarem o amor e a fraternidade no centro da vida social, da política e das relações entre Estados, a palavra “todos” ocorre 15 vezes.
Ainda nesta linha, alguns comentadores da Rádio Renascença referiram que a palavra mais dita pelo Papa Francisco, na JMJ de Lisboa, depois da palavra “Jesus”, foi a palavra “todos”. Esta palavra é usada para expressar o sentido de comunidade e de comunhão entre as pessoas. No entender destes comentadores, durante a JMJ de Lisboa, o Papa terá usado “todos” 102 vezes nos seus discursos.

Portanto, a escolha de Seul como local da próxima JMJ, em 2027, é interpretado como um sinal que desafia a Igreja a encontrar na proximidade inclusiva a melhor forma de expressar a sua missão evangelizadora no mundo. Na verdade, a universalidade da missão da Igreja está alicerçada na universalidade do amor gratuitamente salvífico de Deus. Pois, este Deus é o salvador de todos, que nasce para todos e sempre age em favor de todos. Deus de todos em cujo coração e reino todos têm lugar. O Deus em quem cremos é Aquele que sempre age em prol da unidade e da comunhão inclusiva. Agindo deste modo, Deus não pode missionar uma Igreja que contrarie o Seu permanente modo salvificamente inclusivo de agir. Consequentemente, aquilo que se espera da Igreja é que, no desempenho da sua missão, remova todas as estruturas de exclusão, marginalização e segregação que existam no mundo e dentro dela mesma. Esta marca característica do modo de evangelizar da Igreja tem sido muito bem expressa pelo Papa Francisco, para quem a ação missionária da Igreja deve sempre promover a inclusão, comunhão e participação.
Foi nossa intenção partilhar a perceção que as igrejas asiáticas têm desta eclesiologia de comunhão inclusiva potencializada por este pontificado do Papa Francisco. Evangelizar é sair, é aproximar-se, enfim, é incluir. Uma vez que todos nós podemos sair para nos fazermos próximos de quem é marginalizado, então todos, todos e todos somos missionários e missionados.
Publicado na edição impressa de março de 2024.


