Teresa Messias/Professora auxiliar da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa

1. O vínculo existencial entre a Criação e Trindade criadora
A profunda ligação do ser humano com o planeta que habita encontra-se já presente no Antigo Testamento (cf. Gn 1,1-2,23). Tal visão teológica integra a reflexão judaica e a sua compreensão sobre quem é o ser humano face a Deus, a si mesmo e a todos os seres com os quais partilha a mesma condição criatural. O ser humano está existencialmente marcado por uma condição única: é criado à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1, 26). Tal especificidade ontológica dá-lhe um lugar central na criação que implica igualmente uma responsabilidade especial: a de ser o cuidador e o protetor da criação da qual não é senhor mas, simplesmente, administrador e cuidador, da qual terá de prestar contas a Deus.
A vinculação de toda a criação a Deus, foi assumida por Jesus (cf. Mt 6, 26), que contemplou, no interior de todos os dinamismos criados, a presença ativa da Trindade que os sustenta. Tal vinculação profunda de cada ser criado, animado ou inanimado, a Deus, ensinada por Jesus, foi acolhida pela Igreja. Esta, movida pelo Espírito Santo e guiada pela presença do Ressuscitado, faz a releitura da tradição judaica à luz do acontecimento que é Jesus Cristo abrindo-se à revelação que Ele comunica neste tempo eclesial e cristológico.
2. Da mansidão à posse da terra
Já no Novo Testamento, uma das passagens evangélicas mais significativas que os discípulos recolheram de Jesus e transmitiram, em duas versões, é o chamado discurso das Bem-aventuranças (cf. Mt 5, 1-11 e Lc 6, 20-23).

As Bem-aventuranças são uma revelação do estilo, do rosto de Cristo. São também uma revelação, na história, do rosto do Pai, do seu ser íntimo, constituindo um chamamento à participação na relação de Cristo ao Pai. Apontam um percurso existencial, um caminho transformativo, guiam-nos para a plenitude escatológica do Reino de Deus, mediado pela incarnação do Verbo, pelo mistério pascal de Jesus. Assim sendo, o percurso que apontam não é fundado em critérios mundanos ou carnais no sentido de S. Paulo, (cf. Gal 5, 16), mas na vida transbordante que o Pai nos oferece na existência dada de Jesus. Elas apontam para um trabalho de transformação interior, com o auxílio e sob a ação do Espírito Santo. Não são um percurso externo à configuração e ao seguimento de Cristo, nem tão pouco uma lista de virtudes éticas que se possam impor de modo voluntarista à vontade humana (a nós, aos outros ou ao mundo) que não esteja aberta e radicada na ação do Espírito Santo, no interior do mistério de Jesus. Por isso mesmo, a sua vivência não é uma proposta solitária ou uma configuração individual para uma pessoa mas implicam um horizonte comunitário: o Corpo de Cristo, a comunidade eclesial, o mundo.
Numa das Bem-aventuranças Jesus afirma: “Felizes os mansos porque possuirão a terra.” (Mt 5,5) Estabelece assim uma relação espiritual entre a vivência da mansidão e posse da terra. No entanto, este vínculo não é óbvio. Requer compreender o que é a mansidão como atitude de Jesus para depois conhecermos o que será “possuir” ou receber em herança a terra. Com efeito, a mansidão que o texto refere é a atitude do ser humano crente e fiel a Deus que aceita docilmente e com confiança, abandonando-se Deus e à sua vontade, os acontecimentos difíceis da vida que o agridem e as ações dos homens que o oprimem. É doçura interior face à adversidade, enraizada na confiança em Deus que o ama e que ele crê firmemente que, a seu tempo, virá em seu socorro. O manso espera em Deus, na sua salvação, sem se revoltar contra o Senhor, sem causar violência no mundo, sem querer fazer justiça pelas suas próprias mãos, antes cumprindo o mandamento do amor e cuidado fraternos. É manso quem se reconhece pobre ou desvalido face ao sofrimento e ao mal do mundo mas sabe que o Senhor é o Deus da vida, mais forte que o mal que o atinge. A ele cabe-lhe continuar a servir, a amar e a ser fiel ao mandamento do Senhor, esperando d’Ele a libertação do sofrimento e da opressão, a sua realização plena. É significativo que Jesus vincule esta atitude, de quem não responder ao mal com o mal, de quem não se exaspera com as provações da vida, de quem não age com violência face aos violentos mas espera em Deus o seu destino, com a futura “posse” da terra. Tal posse não é resultado de uma atitude dominadora, agressiva ou violenta sobre o mundo. É, ao contrário, um acolhimento amoroso dos bens criados que Deus dará gratuitamente ao seu servo fiel e manso. O servo manso receberá de Deus a terra onde viveu guiado pelo mesmo amor de Deus, exercendo o bem e cuidando de todas as realidades criadas sem ceder à violência. É a doçura que exerce para com todas as realidades criadas, amando-as e cuidando-as como sendo de Deus, que funda o que virá a ser a sua “posse”. Só se possuirá como dom recebido de Deus aquilo que se amou em Deus, pelo qual se deu a vida, tal como Jesus.
3. Cuidado da “Casa comum”: missão cristã e conversão ecológica
Na junção entre a interdependência do ser humano no interior da criação e a missão de Jesus, Verbo incarnado, o manso que entregou a vida para cuidar e retirar o pecado de toda criação que o Pai colocou na suas mãos (cf. Jo 13,3), a Igreja compreende que é parte da missão de todo o cristão o cuidado da terra e de todas as suas criaturas. Já desde o séc. XX, época em que se começaram a tornar mais evidentes os desequilíbrios ecológicos e os fatores poluentes causados pelo comportamento humano, vários Papas chamaram a atenção para o vínculo existente entre a visão cristã do mundo, o cuidado com a natureza e todos os seres que a constituem. Foi o caso de Paulo VI (por ex., Octogesima adveniens 21), João Paulo II (por ex. Redemptoris hominis 15; Centesimus annus 37-38) e, já no séc. XXI, Bento XVI (por ex. Caritas in veritate 48-52).
O Papa Francisco tornou este tema central no seu pontificado, reconhecendo a importância decisiva do cuidado com a criação como parte integrante da missão cristã, sobretudo na encíclica Laudato sí (2015), a que se seguiu a exortação apostólica Laudate deum (2023). Em 2015, numa metáfora plena de realismo e consequências, afirma que “a nossa casa comum” se pode comparar a uma irmã ou uma boa mãe (cf. LS 1) que sofre com as feridas e maus-tratos causados pelo ser humano e pelo pecado que se situa no seu coração (cf. LS 2, 8, 66). As dores do planeta, nas quais se incluem todas as dores e gritos da humanidade afetada pela crise ambiental e ecológica que atinge todos os seres vivos, têm um causador que é o próprio ser humano. Nessa medida, o princípio de toda a ação de reparação e cuidado ecológico com o mundo tem de partir de uma “conversão ecológica” (LS, 219-221). Na verdade, esta expressão já tinha sido usada por João Paulo II, na audiência geral de 17 de janeiro de 2001. Aí alertou os cristãos para a importância decisiva do “compromisso para afastar a catástrofe ecológica” e, mostrando a responsabilidade do comportamento e do pecado humanos, afirmava que “é preciso apoiar e estimular a conversão ecológica”.

Francisco expande e amplia este pedido de conversão ecológica na LS. Ela “comporta deixar emergir, nas relações com o mundo que [n]os rodeia, todas as consequências do encontro com Jesus. Viver a vocação de guardiões da obra de Deus não é algo de opcional nem um aspeto secundário da experiência cristã, mas parte essencial duma existência virtuosa.” (LS 217) O Papa vincula tal conversão a uma dimensão irrecusável da espiritualidade cristã face à crise climática: “a conversão ecológica, fazendo crescer as peculiares capacidades que Deus deu a cada crente, leva-o a desenvolver a sua criatividade e entusiasmo para resolver os dramas do mundo, oferecendo-se a Deus «como sacrifício vivo, santo e agradável» (Rm12, 1)” (LS, 220). Ela tem de fazer parte da atitude de entrega amorosa a Deus, aos irmãos e ao mundo. Ao fazê-lo, Francisco inscreveu definitivamente o cuidado e o esforço com o equilíbrio ecológico do planeta como dimensão irrecusável da espiritualidade cristã, do esforço de conversão do coração, da mente e das ações, do seguimento e participação da missão de Cristo. Procurando ser abrangente e oferecer este novo horizonte de missão com perspetiva ampla, Francisco desenvolveu uma noção nova e relevante: a ecologia integral.
Mas o que é ecologia integral? O adjetivo “integral” significa que os desequilíbrios ambientais do mundo são tão complexos que não podem nem devem ser apenas resolvidos a partir de visões ou soluções meramente ecológicas, vindas unicamente do campo científico que é a Ecologia. Francisco aponta a necessidade de uma ecologia integrativa da complexidade dos saberes porque a crise climática é também uma crise humana. As soluções têm de vir não apenas da Ecologia mas de todas as áreas do saber humano: Economia, Política, Sociologia, Filosofia, Direito, Religião, Ciência e Tecnologia, Artes, etc. Todas estas áreas do saber devem colaborar para que todos os seres criados, particularmente os seres humanos entre si, vivam em harmonia, respeito e equilíbrio. Não nos bastarão soluções técnico-científicas para lidar com uma crise complexa que tem por causa o pecado do coração humano e como consequência factos económicos, sociais, políticos, de justiça, religiosos/contemplativos, filosóficos, de mentalidades e valores, de sensibilidade humana. Há uma interação entre os ecossistemas e as várias dimensões humanas do mundo.

Para além da Ecologia ambiental, Francisco defende a existência de uma ecologia económica e social, uma vez que a crise ambiental é igualmente uma crise social, onde os mais pobres são os mais afetados e desvalidos, e uma crise económica, fruto da ambição, destruição de recursos, de uma distribuição assimétrica e injusta dos bens criados. “Não há duas crises separadas: uma ambiental e outra social; mas uma única e complexa crise sócio-ambiental. As diretrizes para a solução requerem uma abordagem integral para combater a pobreza, devolver a dignidade aos excluídos e, simultaneamente, cuidar da natureza” (LS 139). De tal modo há uma reciprocidade nesta interação que “hoje, a análise dos problemas ambientais é inseparável da análise dos contextos humanos, familiares, laborais, urbanos, e da relação de cada pessoa consigo mesma, que gera um modo específico de se relacionar com os outros e com o meio ambiente” (LS 141).
A espiritualidade cristã é chamada a incorporar na sua contemplação, oração, práticas e decisões a responsabilidade individual e comunitária pela cura e prevenção das feridas ambientais do planeta. É imperativo educar e formar para a compaixão espiritual para com o gemido e o grito da terra que nos chega em todos os fenómenos de destruição ambiental e humana que estão a suceder diante de nós. Como pediu recentemente o Papa Francisco, “rezemos pelo grito da terra […]. Nós ouvimos esta dor? Ouvimos a dor de milhares de vítimas das catástrofes ambientais?” (O vídeo do Papa Francisco, setembro 2024. Acessível em https://thepopevideo.org/?lang=pt-br).
4. Espiritualidade ecológica integral e missão cristã
A partir da teologia cristã e da leitura orante da situação ecológica e ambiental do mundo, urge viver e implementar nas nossas vidas novas linhas de espiritualidade que se apresentem como decisivos fatores de conversão e mudança ecológica integral. Uma das mais importantes é a reaprendizagem do que é a “qualidade de vida”, desvinculando-a da prática do consumismo desenfreado, do lucro obtido à custa do esmagamento dos mais fracos e pobres, da contínua experiência de prazeres superficiais que não saciam o coração humano na sua sede de amor e relação. Trata-se de viver um “estilo de vida profético e contemplativo, capaz de gerar profunda alegria sem estar obcecado pelo consumo, […] crescimento na sobriedade e uma capacidade de se alegrar com pouco, […] um regresso à simplicidade que nos permite parar a saborear as pequenas coisas, agradecer as possibilidades que a vida oferece sem nos apegarmos ao que temos nem entristecermos por aquilo que não possuímos” (LS 222).

Uma outra dimensão espiritual é a prática de comportamentos ecológicos e sustentáveis: uso moderado de água e energia, rejeição de comportamentos poluentes, reciclagem de materiais e sua reutilização, evitar fontes de energia poluentes, diminuição do uso de plásticos, entre outros. É igualmente importante o uso de práticas ecológicas integrais, isto é, a prática do amor recíproco na vida política, social e económica: o respeito pelo outro, a restauração do sentido ético, a defesa da verdade, da justiça e dos direitos dos mais pobres, fracos e silenciados, a prática da honestidade em todas as áreas da existência humana, a reaprendizagem da amabilidade para com o próximo, independentemente da etnia ou cultura a que pertença. Numa palavra, trata-se do “amor social” (LS 231) que funda e faz florescer uma cultura do cuidado pelo próximo e por todos os seres criados. Nesta dimensão mais macroscópica da ecologia integral inscrevem-se todas as decisões que as empresas, as comunidades várias, os profissionais das várias áreas do saber e os governos podem tomar ao preferir o cuidado pelo ser humano ao lucro excessivo, o respeito pela vida dos pobres que ao seu esmagamento, a defesa da verdade e da justiça frente à mentira disfarçada e ao poder a qualquer preço, lesar os direitos humanos e sociais dos irmãos para aumentar o interesse e domínio próprios em vez de os defender.
Tais linhas de espiritualidade só poderão ser alimentadas e mantidas a partir da oração, pessoal e comunitária, como atitude de abertura profunda e confiante a Deus e a tudo o mais. Nela recebemos a força e o amor necessários para praticar a compaixão por nós mesmos e pelo mundo. Aí recebemos a graça do arrependimento e da conversão do coração, a força para arriscar novos estilos de vida e de ação. Por ela fazemos a experiência do perdão que nos restaura e recria, acolhemos a possibilidade de um olhar contemplativo que reconhece Deus presente em todas as coisas e pessoas e todas elas em Deus, gerando a fraternidade universal no interior da criação. É na oração que, mesmo face à dor e à morte, aprendemos de Cristo ferido e ressuscitado o milagre da ressurreição como oferta do Espírito Santo criador, última palavra e definitivo ato de amor de Deus pelo mundo e por cada um de nós, chamando-nos a colaborar no nascimento de um “novo céu e uma nova terra” (Ap 21, 1).


