Ecologia integral e missão

Teresa Messias/Professora auxiliar da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa

01. Amazónia (Brasil). Foto: ©GettyImages

1. O vínculo existencial entre a Criação e Trindade criadora

A profunda ligação do ser humano com o planeta que habita encontra-se já presente no Antigo Testamento (cf. Gn 1,1-2,23). Tal visão teológica integra a reflexão judaica e a sua compreensão sobre quem é o ser humano face a Deus, a si mesmo e a todos os seres com os quais partilha a mesma condição criatural. O ser humano está existencialmente marcado por uma condição única: é criado à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1, 26). Tal especificidade ontológica dá-lhe um lugar central na criação que implica igualmente uma responsabilidade especial: a de ser o cuidador e o protetor da criação da qual não é senhor mas, simplesmente, administrador e cuidador, da qual terá de prestar contas a Deus. 

A vinculação de toda a criação a Deus, foi assumida por Jesus (cf. Mt 6, 26), que contemplou, no interior de todos os dinamismos criados, a presença ativa da Trindade que os sustenta. Tal vinculação profunda de cada ser criado, animado ou inanimado, a Deus, ensinada por Jesus, foi acolhida pela Igreja. Esta, movida pelo Espírito Santo e guiada pela presença do Ressuscitado, faz a releitura da tradição judaica à luz do acontecimento que é Jesus Cristo abrindo-se à revelação que Ele comunica neste tempo eclesial e cristológico. 

2. Da mansidão à posse da terra

Já no Novo Testamento, uma das passagens evangélicas mais significativas que os discípulos recolheram de Jesus e transmitiram, em duas versões, é o chamado discurso das Bem-aventuranças (cf. Mt 5, 1-11 e Lc 6, 20-23). 

“Do Senhor é a terra” é um projeto de promoção social dos Leigos Boa Nova em vista a dotar dos conhecimentos técnicos e meios materiais várias comunidades e famílias da missão de Nametil, província de Nampula (Moçambique). Constitui um dos muitos projetos ativos a nível global de cuidado da casa comum e de dignificação dos mais pobres. Foto: ©Sérgio Cabral/Boa Nova

As Bem-aventuranças são uma revelação do estilo, do rosto de Cristo. São também uma revelação, na história, do rosto do Pai, do seu ser íntimo, constituindo um chamamento à participação na relação de Cristo ao Pai. Apontam um percurso existencial, um caminho transformativo, guiam-nos para a plenitude escatológica do Reino de Deus, mediado pela incarnação do Verbo, pelo mistério pascal de Jesus. Assim sendo, o percurso que apontam não é fundado em critérios mundanos ou carnais no sentido de S. Paulo, (cf. Gal 5, 16), mas na vida transbordante que o Pai nos oferece na existência dada de Jesus. Elas apontam para um trabalho de transformação interior, com o auxílio e sob a ação do Espírito Santo. Não são um percurso externo à configuração e ao seguimento de Cristo, nem tão pouco uma lista de virtudes éticas que se possam impor de modo voluntarista à vontade humana (a nós, aos outros ou ao mundo) que não esteja aberta e radicada na ação do Espírito Santo, no interior do mistério de Jesus. Por isso mesmo, a sua vivência não é uma proposta solitária ou uma configuração individual para uma pessoa mas implicam um horizonte comunitário: o Corpo de Cristo, a comunidade eclesial, o mundo. 

Numa das Bem-aventuranças Jesus afirma: “Felizes os mansos porque possuirão a terra.” (Mt 5,5) Estabelece assim uma relação espiritual entre a vivência da mansidão e posse da terra. No entanto, este vínculo não é óbvio. Requer compreender o que é a mansidão como atitude de Jesus para depois conhecermos o que será “possuir” ou receber em herança a terra. Com efeito, a mansidão que o texto refere é a atitude do ser humano crente e fiel a Deus que aceita docilmente e com confiança, abandonando-se Deus e à sua vontade, os acontecimentos difíceis da vida que o agridem e as ações dos homens que o oprimem. É doçura interior face à adversidade, enraizada na confiança em Deus que o ama e que ele crê firmemente que, a seu tempo, virá em seu socorro. O manso espera em Deus, na sua salvação, sem se revoltar contra o Senhor, sem causar violência no mundo, sem querer fazer justiça pelas suas próprias mãos, antes cumprindo o mandamento do amor e cuidado fraternos. É manso quem se reconhece pobre ou desvalido face ao sofrimento e ao mal do mundo mas sabe que o Senhor é o Deus da vida, mais forte que o mal que o atinge. A ele cabe-lhe continuar a servir, a amar e a ser fiel ao mandamento do Senhor, esperando d’Ele a libertação do sofrimento e da opressão, a sua realização plena. É significativo que Jesus vincule esta atitude, de quem não responder ao mal com o mal, de quem não se exaspera com as provações da vida, de quem não age com violência face aos violentos mas espera em Deus o seu destino, com a futura “posse” da terra. Tal posse não é resultado de uma atitude dominadora, agressiva ou violenta sobre o mundo. É, ao contrário, um acolhimento amoroso dos bens criados que Deus dará gratuitamente ao seu servo fiel e manso. O servo manso receberá de Deus a terra onde viveu guiado pelo mesmo amor de Deus, exercendo o bem e cuidando de todas as realidades criadas sem ceder à violência. É a doçura que exerce para com todas as realidades criadas, amando-as e cuidando-as como sendo de Deus, que funda o que virá a ser a sua “posse”. Só se possuirá como dom recebido de Deus aquilo que se amou em Deus, pelo qual se deu a vida, tal como Jesus.

3. Cuidado da “Casa comum”: missão cristã e conversão ecológica

Na junção entre a interdependência do ser humano no interior da criação e a missão de Jesus, Verbo incarnado, o manso que entregou a vida para cuidar e retirar o pecado de toda criação que o Pai colocou na suas mãos (cf. Jo 13,3), a Igreja compreende que é parte da missão de todo o cristão o cuidado da terra e de todas as suas criaturas. Já desde o séc. XX, época em que se começaram a tornar mais evidentes os desequilíbrios ecológicos e os fatores poluentes causados pelo comportamento humano, vários Papas chamaram a atenção para o vínculo existente entre a visão cristã do mundo, o cuidado com a natureza e todos os seres que a constituem. Foi o caso de Paulo VI (por ex., Octogesima adveniens 21), João Paulo II (por ex. Redemptoris hominis 15; Centesimus annus 37-38) e, já no séc. XXI, Bento XVI (por ex. Caritas in veritate 48-52). 

O Papa Francisco tornou este tema central no seu pontificado, reconhecendo a importância decisiva do cuidado com a criação como parte integrante da missão cristã, sobretudo na encíclica Laudato sí (2015), a que se seguiu a exortação apostólica Laudate deum (2023). Em 2015, numa metáfora plena de realismo e consequências, afirma que “a nossa casa comum” se pode comparar a uma irmã ou uma boa mãe (cf. LS 1) que sofre com as feridas e maus-tratos causados pelo ser humano e pelo pecado que se situa no seu coração (cf. LS 2, 8, 66). As dores do planeta, nas quais se incluem todas as dores e gritos da humanidade afetada pela crise ambiental e ecológica que atinge todos os seres vivos, têm um causador que é o próprio ser humano. Nessa medida, o princípio de toda a ação de reparação e cuidado ecológico com o mundo tem de partir de uma “conversão ecológica” (LS, 219-221). Na verdade, esta expressão já tinha sido usada por João Paulo II, na audiência geral de 17 de janeiro de 2001. Aí alertou os cristãos para a importância decisiva do “compromisso para afastar a catástrofe ecológica” e, mostrando a responsabilidade do comportamento e do pecado humanos, afirmava que “é preciso apoiar e estimular a conversão ecológica”. 

A Plataforma de Ação Laudato Si’, constitui uma iniciativa do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, inspirada na encíclica Laudato Si’ do Papa Francisco, de 2015. A plataforma procura, através de vários programas, dotar a Igreja de meios para alcançar soluções realistas e duradouras para a crise ecológica e o cuidado da casa comum. Foto: ©PlataformaDeAcaoLaudatoSi.org

Francisco expande e amplia este pedido de conversão ecológica na LS. Ela “comporta deixar emergir, nas relações com o mundo que [n]os rodeia, todas as consequências do encontro com Jesus. Viver a vocação de guardiões da obra de Deus não é algo de opcional nem um aspeto secundário da experiência cristã, mas parte essencial duma existência virtuosa.” (LS 217) O Papa vincula tal conversão a uma dimensão irrecusável da espiritualidade cristã face à crise climática: “a conversão ecológica, fazendo crescer as peculiares capacidades que Deus deu a cada crente, leva-o a desenvolver a sua criatividade e entusiasmo para resolver os dramas do mundo, oferecendo-se a Deus «como sacrifício vivo, santo e agradável» (Rm12, 1)” (LS, 220). Ela tem de fazer parte da atitude de entrega amorosa a Deus, aos irmãos e ao mundo. Ao fazê-lo, Francisco inscreveu definitivamente o cuidado e o esforço com o equilíbrio ecológico do planeta como dimensão irrecusável da espiritualidade cristã, do esforço de conversão do coração, da mente e das ações, do seguimento e participação da missão de Cristo. Procurando ser abrangente e oferecer este novo horizonte de missão com perspetiva ampla, Francisco desenvolveu uma noção nova e relevante: a ecologia integral.

Mas o que é ecologia integral? O adjetivo “integral” significa que os desequilíbrios ambientais do mundo são tão complexos que não podem nem devem ser apenas resolvidos a partir de visões ou soluções meramente ecológicas, vindas unicamente do campo científico que é a Ecologia. Francisco aponta a necessidade de uma ecologia integrativa da complexidade dos saberes porque a crise climática é também uma crise humana. As soluções têm de vir não apenas da Ecologia mas de todas as áreas do saber humano: Economia, Política, Sociologia, Filosofia, Direito, Religião, Ciência e Tecnologia, Artes, etc. Todas estas áreas do saber devem colaborar para que todos os seres criados, particularmente os seres humanos entre si, vivam em harmonia, respeito e equilíbrio. Não nos bastarão soluções técnico-científicas para lidar com uma crise complexa que tem por causa o pecado do coração humano e como consequência factos económicos, sociais, políticos, de justiça, religiosos/contemplativos, filosóficos, de mentalidades e valores, de sensibilidade humana. Há uma interação entre os ecossistemas e as várias dimensões humanas do mundo. 

A COP28, convenção climática da ONU realizada em dezembro de 2023 no Dubai, não foi apenas uma reunião de líderes mundiais e especialistas em meio ambiente, mas também uma plataforma para o papa Francisco transmitir a mensagem onde ecoaram os valores expressos na Laudato Si’ e na Laudate Deum, através do Secretário de Estado, Cardeal Pietro Parolin. Foto: ©PlataformaDeAcaoLaudatoSi.org

Para além da Ecologia ambiental, Francisco defende a existência de uma ecologia económica e social, uma vez que a crise ambiental é igualmente uma crise social, onde os mais pobres são os mais afetados e desvalidos, e uma crise económica, fruto da ambição, destruição de recursos, de uma distribuição assimétrica e injusta dos bens criados. “Não há duas crises separadas: uma ambiental e outra social; mas uma única e complexa crise sócio-ambiental. As diretrizes para a solução requerem uma abordagem integral para combater a pobreza, devolver a dignidade aos excluídos e, simultaneamente, cuidar da natureza” (LS 139). De tal modo há uma reciprocidade nesta interação que “hoje, a análise dos problemas ambientais é inseparável da análise dos contextos humanos, familiares, laborais, urbanos, e da relação de cada pessoa consigo mesma, que gera um modo específico de se relacionar com os outros e com o meio ambiente” (LS 141).

A espiritualidade cristã é chamada a incorporar na sua contemplação, oração, práticas e decisões a responsabilidade individual e comunitária pela cura e prevenção das feridas ambientais do planeta. É imperativo educar e formar para a compaixão espiritual para com o gemido e o grito da terra que nos chega em todos os fenómenos de destruição ambiental e humana que estão a suceder diante de nós. Como pediu recentemente o Papa Francisco, “rezemos pelo grito da terra […]. Nós ouvimos esta dor? Ouvimos a dor de milhares de vítimas das catástrofes ambientais?” (O vídeo do Papa Francisco, setembro 2024. Acessível em https://thepopevideo.org/?lang=pt-br).

4. Espiritualidade ecológica integral e missão cristã

A partir da teologia cristã e da leitura orante da situação ecológica e ambiental do mundo, urge viver e implementar nas nossas vidas novas linhas de espiritualidade que se apresentem como decisivos fatores de conversão e mudança ecológica integral. Uma das mais importantes é a reaprendizagem do que é a “qualidade de vida”, desvinculando-a da prática do consumismo desenfreado, do lucro obtido à custa do esmagamento dos mais fracos e pobres, da contínua experiência de prazeres superficiais que não saciam o coração humano na sua sede de amor e relação. Trata-se de viver um “estilo de vida profético e contemplativo, capaz de gerar profunda alegria sem estar obcecado pelo consumo, […] crescimento na sobriedade e uma capacidade de se alegrar com pouco, […] um regresso à simplicidade que nos permite parar a saborear as pequenas coisas, agradecer as possibilidades que a vida oferece sem nos apegarmos ao que temos nem entristecermos por aquilo que não possuímos” (LS 222).

No Sudão do sul, as Irmãs Salesianas de Dom Bosco são pioneiras numa economia circular, através do projeto “Uso de Garrafas Plásticas Residuais na Construção”. O projeto exemplifica o compromisso com o desenvolvimento sustentável, convertendo o lixo quotidiano em materiais de construção, estabelecendo simultaneamente as bases para a autossuficiência, habilitando os envolvidos, que ajudam na recolha de materiais e na construção. Foto: ©PlataformaDeAcaoLaudatoSi.org

Uma outra dimensão espiritual é a prática de comportamentos ecológicos e sustentáveis: uso moderado de água e energia, rejeição de comportamentos poluentes, reciclagem de materiais e sua reutilização, evitar fontes de energia poluentes, diminuição do uso de plásticos, entre outros. É igualmente importante o uso de práticas ecológicas integrais, isto é, a prática do amor recíproco na vida política, social e económica: o respeito pelo outro, a restauração do sentido ético, a defesa da verdade, da justiça e dos direitos dos mais pobres, fracos e silenciados, a prática da honestidade em todas as áreas da existência humana, a reaprendizagem da amabilidade para com o próximo, independentemente da etnia ou cultura a que pertença. Numa palavra, trata-se do “amor social” (LS 231) que funda e faz florescer uma cultura do cuidado pelo próximo e por todos os seres criados. Nesta dimensão mais macroscópica da ecologia integral inscrevem-se todas as decisões que as empresas, as comunidades várias, os profissionais das várias áreas do saber e os governos podem tomar ao preferir o cuidado pelo ser humano ao lucro excessivo, o respeito pela vida dos pobres que ao seu esmagamento, a defesa da verdade e da justiça frente à mentira disfarçada e ao poder a qualquer preço, lesar os direitos humanos e sociais dos irmãos para aumentar o interesse e domínio próprios em vez de os defender.

Tais linhas de espiritualidade só poderão ser alimentadas e mantidas a partir da oração, pessoal e comunitária, como atitude de abertura profunda e confiante a Deus e a tudo o mais. Nela recebemos a força e o amor necessários para praticar a compaixão por nós mesmos e pelo mundo. Aí recebemos a graça do arrependimento e da conversão do coração, a força para arriscar novos estilos de vida e de ação. Por ela fazemos a experiência do perdão que nos restaura e recria, acolhemos a possibilidade de um olhar contemplativo que reconhece Deus presente em todas as coisas e pessoas e todas elas em Deus, gerando a fraternidade universal no interior da criação. É na oração que, mesmo face à dor e à morte, aprendemos de Cristo ferido e ressuscitado o milagre da ressurreição como oferta do Espírito Santo criador, última palavra e definitivo ato de amor de Deus pelo mundo e por cada um de nós, chamando-nos a colaborar no nascimento de um “novo céu e uma nova terra” (Ap 21, 1).