[FIGURAS E FACTOS]: Cem anos de D. Manuel Vieira Pinto

A revista Boa Nova traz aos seus leitores e amigos a figura de um grande bispo português: D. Manuel Vieira Pinto (1923-2020). Neste espaço exíguo, melhor que ninguém para nos ajudar nesta tão grata memória do que o Pe. Manuel Vilas Boas, homem da comunicação social e membro da Sociedade Missionária da Boa Nova. Pela reportagem “Os caminhos andados do profeta de Amarante”, emitida na antena da TSF, trouxe aos ouvintes a evocação do centenário do nascimento de D. Manuel Vieira Pinto, arcebispo de Nampula, da qual destacamos alguns trechos.

D. Manuel Vieira Pinto: «um Deus que precisasse que o defendessemos não era Deus. Deus não precisa que o defendam. O povo, sim, precisa que alguém o defenda» Foto: Manuel Vilas Boas

Foi pela manhã de 9 de dezembro de 1923 que nasceu Manuel da Silva Vieira Pinto, em Aboim, no concelho de Amarante. A pobreza dava mãos à generosidade, numa terra pequena e de fracos recursos.

José Lino é um dos nove irmãos e um dos três afilhados do padre Manuel. Ambiência rural de pequenos agricultores. […] Com a ajuda do pároco, o Seminário Diocesano do Porto ganhou mais um candidato. Cedo se manifestou nele o líder natural que, depressa, se fez sentir nos eventos, de caráter cultural e festivo, na aldeia dedicada a S. Pedro.

Em plena guerra mundial, um grupo de seminaristas daquela zona, abrigada pelo Marão, visitava o esplendor da filosofia e da poesia de Teixeira de Pascoaes, na freguesia de Gatão. […] Teixeira de Pascoaes gostava de conversar com aqueles rapazes inquietos […].

O PRIMEIRO PREGADOR NA RTP

Do bulício do meio operário juvenil, em que se sentiu como peixe na água, o padre Manuel Vieira Pinto é nomeado, em 1955, Diretor espiritual do Seminário Menor de Vilar, no Porto. Infelizmente, acabaria nesta
casa os seus dias, 65 anos depois, vítima de Alzheimer.

Nos anos 60, enquanto a figura lendária do bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, remia, com o exílio, as investidas contra o Governo de Salazar, Vieira Pinto tornou-se o pregador maior da Igreja portuguesa, que a televisão nascente descobriu no Pavilhão de Desportos de Lisboa e Porto. Nascia em Portugal a estrela do Movimento por um Mundo Melhor, no pontificado do papa Pio XII. O jesuíta Ricardo Lombardi tinha descoberto um novo modelo de espiritualidade. Acontecia um terramoto que haveria de sacudir a sonolência da Igreja Católica, mesmo às portas do Concílio Ecuménico Vaticano II, trazido a lume, uma década depois, pelo improvável Papa João XXIII […].

Manuel Vilas Boas (à direita) entrevista D. Vieira Pinto, em Nampula. Foto: Manuel Vilas Boas

UMA CRIANÇA NEGRA FAZ ESTREMECER COLONOS BRANCOS

O Vaticano, na pessoa do Papa Paulo VI, não hesitou escolher, em 21 de abril de 1967, o padre Manuel Vieira Pinto, diretor do Movimento por um Mundo Melhor, para bispo da diocese de Nampula, no norte de Moçambique.

Um gesto profético bem calculado, no aeroporto de Nampula, haveria de marcar indelevelmente, o seu múnus episcopal, na colónia de Moçambique. Uma criança negra, arrancada ao colo da mãe e projetada contra o Sol, fez estremecer uma multidão de colonos brancos, à espera de um pastor católico e português, da mesma cor…

A pouco e pouco, muda-se a vida, toda a vida, em tons africanos […].

BISPO E MISSIONÁRIOS EXPULSOS E ACUSADOS DE TRAIDORES

Há um novo missionário na fogueira de Nampula. Manuel Horta, de 82 anos, natural de Vila Nova de Tazém, no concelho de Gouveia. O missionário comboniano foi expulso de Moçambique por ter promovido e assinado, em 12 de fevereiro de 1974, o documento Um Imperativo de Consciência. Mas não se sente, por isso, traidor da pátria. Apenas teve pena do sofrimento por que passou o povo moçambicano.

Por sua vez, Anselmo Borges, teólogo e padre da Sociedade Missionária Portuguesa, assinou o primeiro livro sobre o pensamento de Vieira Pinto quando, em 1992, ocorreram os 25 anos da sua ordenação episcopal, tendo sido homenageado pelo Presidente Mário Soares […].

Anselmo Borges regista no referido livro um eloquente testemunho: «Porque é que o Senhor, que é bispo, sempre que vem falar comigo, me refere os sofrimentos do povo, dos seus direitos e a sua defesa em vez de me falar de Deus e da religião? Ao que D. Manuel respondeu: Sabe, um Deus que precisasse que o defendessemos não era Deus. Deus não precisa que o defendam. O povo, sim, precisa que alguém o defenda». Segundo Anselmo Borges, foi este à-vontade do bispo de Nampula com Samora Machel que permitiu que Vieira Pinto lhe dirigisse as mais extensas cartas com críticas duras sobre os desmandos da Frelimo, no poder.

D. Manuel Vieira Pinto (à direita) com o sucessor, D. Tomé Makhweliha, arcebispo moçambicano de Nampula. Foto: Manuel Vilas Boas

A simplicidade do bispo contrastava com o ambiente de espionagem política capitaneada pela PIDE-DGS. Mal chegadas a Nampula, as religiosas do convento Mater Dei foram testemunhas da polémica expulsão do bispo e dos missionários que ousaram defender a autodeterminação e a independência dos povos.

O BISPO ESQUECIDO

Com o ministério pastoral, exercido na antiga colónia de Moçambique, como já referido, foi vítima da doença de Alzheimer, por mais de uma década, e sepultado, em plena pandemia, a que apenas quatro familiares puderam estar presentes, D. Manuel Vieira Pinto desapareceu aos 96 anos de idade. O arcebispo emérito de Nampula viu-se, assim, ocultado de um mundo que ele, mais do que ninguém, amou até ao fim.

Caberá à Igreja Católica em Portugal e em Moçambique, bem como aos Governos destes dois países, envidarem esforços para que não se apague a memória de quem serviu, com dignidade e denodo, a humanidade.