[FIGURAS E FACTOS]: Um homem livre e um Bispo pastor – Recordação de D. António Ferreira Gomes

(Jorge Teixeira da Cunha) – Vale a pena recordar o Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes (1906-1989), por ocasião dos 50 anos da Revolução de Abril de 1974. O seu testemunho preparou esse momento de grande importância cívica, reflectiu criticamente os primeiros anos do regime democrático e ficou como uma figura histórica da importância da fé cristã para o melhoramento contínuo da qualidade da nossa vida.

Tirando o seu percurso brilhante como seminarista e como padre, nada fazia prever o papel que lhe foi dado desempenhar nos anos maduros da sua vida de bispo. Em 1948, foi eleito para coadjutor da Diocese de Portalegre e Castelo Branco. Ficou aí apenas 4 anos, mas a sua presença foi marcante. Estudou e interveio muito na vida das pessoas do interior do país, entre a Beira Baixa e Alentejo, já então marcado pelo abandono das políticas centralistas da capital. A história regista o seu pregão contra aquilo que chamou “a miséria imerecida do nosso mundo rural”, adaptando uma expressão que o Papa Leão XIII tinha dita da classe operária, no fim do séc. XIX. 

Em 1952 foi transferido para a Diocese do Porto. O nosso país vivia então os anos mais duros do regime que se chamou Estado Novo. António de Oliveira Salazar, era o chefe do governo ia para três décadas, e fazia pesar a sua mão sobre quem se lhe opunha. A liberdade de expressão era controlada pela censura, as eleições eram manipuladas, o isolamento internacional de Portugal mantinha o nosso país num subdesenvolvimento económico. D. António Ferreira Gomes propôs repetidamente que a Conferência Episcopal se pronunciasse sobre estes temas num documento que fizesse uma avaliação ética do corporativismo, que era como se definia o regime de então. Os bispos hesitaram durante anos sobre a conveniência desta pastoral até que o Bispo do Porto resolveu avançar, com a legitimidade de bispo de uma diocese. Pediu uma audiência a Salazar e escreveu um documento que enviou em ordem ao encontro. Esse texto foi posto a circular, talvez por gente do próprio Governo, a audiência foi anulada e o Bispo ficou numa situação complicada. A tensão foi crescendo e o conflito estalou em 1959, quando a polícia política impediu D. António de reentrar no país. Seguiu-se um exílio de 10 anos, até 1969. Regressado à Diocese, o Bispo foi acompanhando os últimos anos do regime, reflectindo sobre as principais questões que o país enfrentava, nomeadamente a questão da guerra colonial. Após o 25 de Abril, o papel pastoral do Bispo do Porto, como era conhecido, foi, mais uma vez, importantíssimo, em ordem a prevenir os desmandos que as revoluções sempre ocasionam.

D. António Ferreira Gomes, ao centro, P. Agostinho Rodrigues, 1º à esquerda, Diretor da “Boa Nova” há 50 anos, e D. Manuel da Silva Martins, bispo de Setúbal, a seu lado. Foto: SMBN

Qual foi a importância da vida e obra pastoral de D. António Ferreira Gomes?

A meu ver, foi o seu testemunho que evitou uma questão religiosa como a da Primeira República, foi a sua pregação que resgatou o episcopado português de uma conivência desonrosa com o Estado Novo, foi a sua palavra lúcida que orientou a Igreja portuguesa na reforma preconizada pelo Concílio Vaticano II. Reparemos que os três aspectos são de uma relevância muito grande. De facto, não fora a coragem e o sacrifício pessoal do Bispo do Porto, a Igreja teria sido acusada pelos homens de Abril de ser o sustentáculo do regime e, por conseguinte, poderia ter-se verificado uma onda de perseguição que chegou a ser ensaiada em alguns ambientes por aquela altura. Como não há mal que não traga algum bem, a permanência de uma década no centro da Europa, a participação nos três anos do Concílio do Vaticano (1962-1965) deu a D. António uma experiência de vida, uma compreensão da fé, um sentido da pretendida reforma da Igreja que lhe possibilitaram ser o que foi nos anos finais da sua vida pastoral.

A vida deste bispo foi, pois, uma graça para a Igreja portuguesa e para o nosso país. Vale a pena dá-lo a conhecer às novas gerações como uma figura de homem de Igreja, de cidadão, de pastor cujo exemplo foi decisivo para a construção da democracia portuguesa, agindo a partir da fé cristã.