[FIGURAS E FACTOS]: Venerável D. António Barroso: humanista e missiólogo (II)

Painel de azulejo figurativo com a representação de D. António Barroso enquanto evangelizador dos povos africanos, indianos e mongóis, sito no átrio de entrada do Seminário das Missões de Cernache do Bonjardim. Produção: Fábrica Aleluia (Aveiro), 1937.

(Amadeu Gomes de Araújo, Vice-Postulador da Causa de Canonização de D. António Barroso) – António Enes foi nomeado Comissário Régio para Moçambique, em junho de 1891. Apercebendo-se do estado lastimoso em que se encontrava a prelazia da colónia – «a mais abandonada de todas as dioceses ultramarinas», segundo Fortunato de Almeida – e conhecendo o talento e virtudes do missionário Barroso, entretanto regressado de Angola, o novo governante promoveu a sua nomeação para a prelazia, rogando-lhe que aplicasse ali o saber missiológico e os métodos que trouxera do Congo, como conta o Pe. António Garcia, s.j., na sua História de Moçambique Cristão

Nomeado bispo de Himéria, pelo Papa Leão XIII, o experiente missionário barcelense foi titular da prelazia de Moçambique, de 1891 a 1897. A sua ação e a de António Enes acabaram por quase coincidir no tempo. Coincidiram também em algumas ideias e projetos relativos ao desenvolvimento da Igreja naquela distante colónia do Índico. 

Tendo acompanhado de perto o trabalho desenvolvido na prelazia, António Enes – o ideólogo da colonização pós-escravatura – enalteceu a obra do bispo Barroso. Segundo ele, foi autêntico mestre de missionários, porque não se limitou a repetir fórmulas e métodos; introduziu reformas, procurou abrir caminhos novos, dando prioridade ao homem. Valorizou o ser humano e a condição humana, tomando decisões que muito sensibilizaram o laico António Enes.

No Congo e em Moçambique e também em Meliapor, o insigne bispo missionário restaurou o verdadeiro sentido da missionação como evangelização séria das populações locais. Não mera distribuição de batismos e administração dos demais sacramentos, para preenchimento de dados estatísticos. Soube aliar a ação à reflexão. Foi missionário e missiólogo. E humanista. Defendeu valores como amor, respeito e honestidade, generosidade e compaixão. É notável a preocupação que manifestou pelas populações nativas, pelo homem africano, tantas vezes debulhado dos seus direitos fundamentais. (destaque!)

Recordando o II Congresso Missionário Português

 Em 1954 – completam-se agora 70 anos – a diocese do Porto celebrou o centenário do nascimento de D. António Barroso, com entusiasmo e devoção, com brilho e esplendor. Realizou-se então em Barcelos o «II Congresso Missionário Português», presidido pelo Cardeal Cerejeira, com a presença do Cardeal de Moçambique, D. Teodósio Clemente Gouveia, e de todos os arcebispos e bispos portugueses. Era eu criança de escola e assisti, de olhos esbugalhados, à passagem de algumas destas figuras ilustres, cobertas de púrpura e de pompa, pela capela mortuária, em Remelhe. A oração fúnebre esteve a cargo de D. António Ferreira Gomes, e encontra-se publicada no jornal «O Comércio do Porto», de 06-11-1954. O então bispo do Porto, alardeando a sua vasta cultura, não hesitou em colocar o insigne bispo missionário, no plano patriótico, a par dos Almeidas, dos Albuquerques e dos Castros; e, no plano religioso, a par dos Assis, dos Xavieres e dos Britos… E mostrou ainda ser um grande devoto do Servo de Deus, hoje Venerável. Uma oração fúnebre notável, repassada de erudição, que pôs em relevo o maior barcelense dos tempos modernos.

Cartão-postal de D. António Barroso para o amigo Sebastião de Oliveira Braz, datado de 23-09-1891, que assina na dignidade de bispo de Himéria. Foto: domantoniobarroso.pt

Foram muitos, ao longo dos tempos, os intelectuais e académicos que se debruçaram sobre o pensamento missionário de D. António Barroso. O académico e missiólogo Pe. António Brásio, que dedicou a vida à investigação e ao estudo das fontes da história missionária portuguesa, considera D. António Barroso um autêntico mestre de missionários e um teorizador da ação missionária, assegurando mesmo que foi dos melhores e maiores missiólogos do século XIX, pela forma como estudou e expôs os problemas básicos da evangelização de África. Em seu entender, o surto por ele dado à Igreja de Moçambique só encontra paralelo nos tempos atuais: a sua obra foi tão sólida, tão clarividente, de horizontes tão largos na ação e na doutrina, que não houve senão continuá-la. E prossegue: «Agitou ideias, combateu, discutiu, agiu, estudou, reagiu e tornou-se tal vez maior como missiólogo que como missionário. É certamente sob esta faceta do seu espírito e da sua acção que mais o admiramos». (D. António Barroso, Missionário, Cientista, Missiólogo. Lisboa: Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1961, p. 53). «Cremos que neste aspecto fundamental da sua biografia, Barroso é único entre os missionários portugueses do seu tempo». (Ibidem, p. 35). No entender deste ilustre pensador, o legado missionário de D. António merece uma reflexão profunda.

Também D. Daniel Junqueira, bispo de Nova Lisboa, no mesmo Congresso Missionário, se referiu a D. António como «o maior missiólogo do século XIX». (Boletim de D. António Barroso, II Série, n.º 174, Julho, 2008). Ele foi «o maior de todos os missionários modernos. Espírito lúcido, homem prático, habilitado com conhecimentos técnicos […], activo, virtuoso, de consciência recta, de grande alma e de grande coração […], focou a questão missionária como ninguém até ali o tinha feito, e a sua orientação é manifestada nos brilhantes relatórios». (Pe. António Lourenço – A Acção Missionária em Moçambique, in Portugal Missionário. Cucujães: Escola Tipográfica do Colégio das Missões, 1929, p. 90).

O maior missiólogo português

Aberto à modernidade, foi o primeiro em Portugal a aperceber-se e a propor soluções para os problemas vitais da missiologia, então ciência nascente em algumas universidades europeias, sobretudo na Alemanha. Movido por um espírito reformador, procurou modernizar os métodos de ação da Igreja na então chamada África portuguesa. No Congo e, particularmente, em Moçambique, bem como na curta passagem por Meliapor, restaurou o verdadeiro sentido da missionação como evangelização das populações locais, aliando sempre a ação à reflexão e perspetivando o futuro.

Consciente de alguns constrangimentos e limitações que afetavam o funcionamento e a imagem do Colégio das Missões Ultramarinas – instituição onde na juventude recebera a sua formação missionária – preocupou-se com a renovação daquele Colégio. Foi precursor da criação de um Instituto Missionário, com raízes nacionais, com autonomia em relação ao Estado e com uma organização que assegurasse a vida comunitária e o futuro dos seus membros: a Sociedade Portuguesa das Missões Católicas Ultramarinas, atualmente designada Sociedade Missionária da Boa Nova. (destaque!)

 Vista geral da Missão do Salvador do Congo no início do século XX. Esta missão foi fundada pelo Pe. António Barroso, onde foi superior de 28-12-1880 a 14-09-1888. Foto: domantoniobarroso.pt

Não é fácil discorrer sobre a ciência missiológica, mas, das definições dadas por Mondreganes e outros autores, pode concluir-se, sintetizando, que a missiologia estuda a expansão do cristianismo e a implantação da Igreja no mundo (REGO, A. da Silva – Lições de Missionologia. Lisboa: Junta de investigações do Ultramar, 1961, pp. 14-15). Ora, nenhum dos missionários portugueses manifestou tanto empenho em refletir profundamente sobre a expansão do cristianismo, sobre a implantação da Igreja nos territórios do Padroado, particularmente nos do continente africano, como D. António Barroso. Entre os grandes missionários portugueses do seu tempo, foi o que revelou maior capacidade de aliar a ação à reflexão, como fez, com brilhantismo, nos seus relatórios, e, em particular, no de 1894. É certamente o primeiro grande missiólogo português, quiçá o maior de todos, sem desprimor para outros, como o Pe. José Maria Antunes (1856-1928), também ele um grande obreiro do ressurgimento missionário no Ultramar, havendo conseguido a promulgação do Estatuto Orgânico das Missões Católicas Portuguesas, ou, mais recentemente, como o grande académico Pe. António da Silva Rego (1905-1986), que criou e regeu a primeira cátedra de missiologia, em Portugal, nos anos 40 do século XX, no então Instituto de Ciências Sociais e Política Ultramarina, e autor, entre outras obras, de «Lições de Missionologia». Há que relevar ainda o prestigiado historiador Pe. António Brásio (1906-1985), da Academia de Ciências de Lisboa, comendador da Ordem do Império e da Ordem do Infante D. Henrique, pelos trabalhos de investigação que realizou, e também ele autor de obras como «História e Missiologia» e «D. António Barroso, Missionário, Cientista, Missiólogo». Pois é exatamente o Pe. António Brásio que afirma ter sido D. António um dos melhores e maiores missiólogos que a Igreja teve, destacando a sua extraordinária capacidade de associar o pensamento reflexivo ao trabalho concreto que realizou, bem como a enorme inovação que trouxe à Igreja missionária portuguesa, na época de charneira em que viveu.