(Pe. Rui Ferreira) – O Pe. Nuno Lima, Missionário da Boa Nova, natural de Cesar, Oliveira de Azeméis, partiu para o Japão logo após sua ordenação, há 25 anos. Hoje, pároco da Catedral de Osaka e secretário do Cardeal Maeda, partilha connosco as suas experiências de inculturação, bem como os desafios e aprendizagens de um sacerdote católico num país maioritariamente budista e xintoísta.

Numa trajetória de 25 anos de dedicação missionária no Japão, o Pe. Nuno Lima encontrou no país do Sol Nascente um campo fértil de desafios e descobertas. Desde os primeiros passos na aprendizagem da língua japonesa até assumir a paróquia central de Osaka, o Pe. Nuno reflete sobre as diferenças culturais, a importância do diálogo inter-religioso e a missão de integrar diversas comunidades num ambiente multicultural. Em entrevista à Boa Nova, destaca como a sua vocação evoluiu com as suas experiências no Japão.
Vocação sacerdotal missionária
Boa Nova (BN): Pe. Nuno, o que o inspirou a seguir a vocação sacerdotal e missionária?
Pe. Nuno Lima (PN): Eu entrei para o seminário, com 13 anos. O que me levou a entrar para o seminário foi a passagem pela escola de um Missionário da Boa Nova, o Pe. Rocha [também natural de Cesar, assassinado em Moçambique, em 1989]. Falou com entusiasmo da vida missionária, e aquilo ficou. Depois, vamos fazendo as nossas opções e vendo se essa é, de facto, a vontade de Deus. Entre o discernimento pessoal e o discernimento dos superiores, foi esse o percurso que eu fiz.
BN: Após a ordenação, o Pe. Nuno partiu quase imediatamente para o Japão. Como é que o Japão surgiu no horizonte da sua vocação missionária?
PN: O Japão surgiu como uma opção. Mais do que uma opção pessoal, foi uma opção da Sociedade Missionária (SMBN). Na linha do apelo de S. João Paulo II, na Encíclica Redemptoris Missio, de abertura à Ásia, a SMBN foi pensando nas possibilidades de se abrir à Ásia. O Japão surgiu, então, como a possibilidade mais viável para um grupo pequeno como o nosso ter uma presença significativa na Ásia. Em termos pessoais, sempre tive o desejo de trabalhar num campo que não fosse de língua portuguesa. Nessa altura, havia a possibilidade de ir para a Zâmbia ou para o Japão. Portanto, foi sobretudo o desejo de trabalhar num campo onde a língua não fosse a portuguesa.
Renascer e desabrochar na cultura japonesa
BN: Além da língua, também a cultura é muito diferente. Como é que foi a sua adaptação?
PN: Como missionários, vamo-nos preparando para viver em culturas diferentes e aceitar as culturas onde estamos e onde nos queremos integrar. Nesse sentido, havia a disponibilidade e abertura da minha parte para aceitar a cultura diferente onde estava. Mas, é verdade que o Japão e a cultura japonesa são bastante exigentes e diferentes daquilo a que estamos habituados. Não foi fácil, por todas essas diferenças, mas também não foi tão difícil. Foi uma coisa natural.
BN: E como é que foi, no geral, a experiência inicial da missão no Japão?
PN: Nos primeiros dois anos, a diocese proporcionou um estudo intensivo da língua. E quando digo estudo intensivo, é quase exclusivo. Colaboramos na pastoral dentro das nossas possibilidades, mas a prioridade é o estudo. Depois disso, fui nomeado pároco in solidum de três paróquias na zona periférica de Osaka. E foi aí que comecei a ser padre, porque fui enviado para o Japão logo a seguir à ordenação. Foi nessas três paróquias da periferia de Osaka que me fui fazendo padre, em contato com as pessoas. Éramos três padres que fazíamos uma equipa pastoral. Foi também com os meus colegas que eu fui aprendendo.
A beleza e o desafio da multiculturalidade
BN: Atualmente é pároco da Catedral de Osaka, uma das maiores ao nível de crentes no Japão, e secretário do Cardeal Maeda. Quais são as principais responsabilidades da sua função?
PN: Como pároco da Catedral, a principal responsabilidade é proporcionar espaço para que as diversas comunidades que ali se juntam tenham espaço e tempo para celebrar. Estou sobretudo encarregue da pastoral de língua japonesa. Depois, tenho um colega filipino que está encarregue da pastoral de língua inglesa. Além disso, temos missas em vietnamita e em coreano. Portanto, como pároco, tenho sobretudo esta função de coordenar as diversas comunidades e equipas.
BN: E quais são os maiores desafios dessa coordenação?
PN: Neste momento, o maior desafio é esta integração das diferentes comunidades, porque as diferenças linguísticas e culturais às vezes criam atritos e divisões. É tentar superar essas divisões, e tentar que as pessoas colaborem umas com as outras.

BN: A paróquia da Catedral e a realidade de Osaka, como uma grande metrópole, é uma realidade multicultural?
PN: Sim, por ser central. Quase todas as paróquias agora, no Japão, têm uma realidade multicultural, porque a imigração trouxe muitos católicos ao Japão. Neste momento, são sobretudo vietnamitas; antes, foram latino-americanos e filipinos. E estão espalhados praticamente por toda a diocese. Sendo a Catedral central, com a facilidade das pessoas se moverem e se juntarem ali, as pessoas vêm. E há muita gente que passa por ali. Sobretudo, neste momento, as missas têm mais participação destas comunidades de língua estrangeira do que provavelmente da comunidade de língua japonesa.
BN: Tendo em conta essa multiculturalidade, num país predominantemente budista e xintoísta, e onde apenas 0,42% da população é católica, como é celebrada a fé no Japão?
PN: Se quisermos continuar esta nota de multiculturalidade, a fé no Japão é celebrada de vários modos. As várias comunidades têm o seu modo distinto de a celebrar. No Japão, de facto, o número de cristãos católicos é muito baixo em relação à população em geral, mas há uma aceitação da presença cristã bastante grande. A presença da Igreja vai muito além dos números, porque há uma presença grande nas escolas, em instituições de saúde e de assistência social. Em termos de vivência, os cristãos japoneses têm muita ligação à tradição que vem dos mais de 400 anos do cristianismo no Japão, de todas as perseguições e da necessidade de defender a fé. Eles têm essa característica de procurar defender a fé e de viver de modo que a possam conservar. Por outro lado, a dimensão missionária está menos presente no cristianismo japonês. Os japoneses vivem a fé de um modo mais pessoal e menos como algo que se partilha e transmite.
Igreja no Japão: germe de comunhão
BN: Como vê o papel da Igreja no Japão?
PN: O papel da Igreja no Japão, retomando o tema da interculturalidade e da multiculturalidade, é extremamente importante, porque o Japão é um país tendencialmente monocultural, de uma etnia apenas. Portanto, eles consideram-se japoneses e todo o Japão tem essa identidade. Mas agora, com todos os desafios da globalização, começam a chegar imigrantes em maior número. Isso é um desafio para a sociedade, e, nesse sentido, penso que a Igreja pode ser um sinal de comunhão e de ligação entre as diversas culturas no Japão. Penso que será, talvez, o testemunho mais necessário que o cristianismo e a Igreja Católica podem dar à sociedade japonesa.
BN: Ser católico é ser universal; por definição é estar aberto.
PN: O diálogo inter-religioso, no Japão, é uma questão bastante difundida, aceite, e não gera conflito, por vários motivos. Um deles é que é muito normal que, nas próprias famílias, haja diálogo inter-religioso. É normal que apenas um membro da família seja católico; por aí, já se faz o diálogo inter-religioso em casa. É frequente que, na mesma família, haja membros de diversas denominações budistas, e, por isso, as pessoas aceitam mais facilmente a diferente adesão a uma religião. Em termos sociais, as religiões também são relativamente aceites. Portanto, não há, neste momento, grandes conflitos entre as diversas correntes religiosas. É algo que acontece naturalmente no dia-a-dia entre as pessoas. Em termos institucionais, talvez por causa desse clima de abertura e de aceitação mútua, também se processa de modo natural: visitamos os templos budistas e eles vêm às igrejas.
“Começam a chegar imigrantes em maior número. Isso é um desafio para a sociedade, e, nesse sentido, penso que a Igreja pode ser um sinal de comunhão e de ligação entre as diversas culturas no Japão.“
BN: Qual tem sido o caminho da Igreja para crescer no Japão?
PN: Essa é a grande questão da missão no Japão. Depois de todo este tempo de intenso trabalho missionário, os números não cresceram. E, até agora, não encontrei ninguém que me respondesse a esta questão de uma forma que eu aceite. Os números dizem isso: os cristãos não aumentam no Japão. Porquê? Por várias razões, vários fatores culturais. Um deles é esta forma privada de se ver a religião; cada um aceita e segue a sua prática religiosa. Outra questão apontada é a identificação do cristianismo como uma religião estrangeira. Temos também as tradições religiosas dos antepassados. Por isso é que, mesmo depois de todo este esforço, de toda esta presença da Igreja nas escolas e nas instituições de solidariedade social, o cristianismo não aumentou. E não sei como é que vai aumentar! Mas, creio que, como diz o Evangelho, é uma semente que nós vamos semeando e que algum dia dará o seu fruto. Contudo, a presença da Igreja vai muito além dos números dos batizados e das pessoas que vêm à igreja.
Igreja: mais japonesa e mais universal
BN: E quais são os principais desafios da Igreja no Japão?
PN: Pessoalmente, penso que o principal desafio da Igreja é procurar ainda mais integrar-se buscando uma linguagem que não seja apenas de palavras, mas também de modos de celebração, modos de viver o cristianismo, que sejam mais próximos da cultura japonesa. Mas simultaneamente com esta abertura ao universal, que é característica do cristianismo, e que, pelos fluxos migratórios que vamos vivendo, é uma realidade também no Japão. Nesse sentido, penso que o grande desafio da Igreja é ser mais japonesa e também mais universal. Podem parecer prioridades contraditórias, mas se a Igreja conseguir estar mais próxima dos valores da cultura japonesa, também estará mais próxima dos valores da universalidade do cristianismo.

BN: Em 25 anos, quais as principais diferenças que o Pe. Nuno consegue assinalar?
PN: Em termos pessoais, penso que também aprendi alguma coisa do que é ser cristão, além do que é ser padre. Vamos aprendendo e aprofundando a fé com as pessoas que encontramos. A importância do silêncio, a atitude de escuta, cresceu em mim nos últimos 25 anos. Não posso falar pela Igreja do Japão no seu todo, porque apenas conheço a diocese de Osaka, que está a fazer este percurso de tentar integrar essas diversas culturas. Mas, penso que aumentou sobretudo esta consciência de que a Igreja do Japão não é uma Igreja dos japoneses, mas uma Igreja daqueles que estão no Japão. É uma frase que vai se ouvindo com mais frequência do que há 25 anos.
BN: Essa questão deve ser válida não só para o Japão, mas para toda a Igreja.
PN: Sim, porque na Igreja ninguém é estrangeiro, portanto não existe a necessidade de fazer esta distinção. Mas fazemos. Fazíamos e fazemos no Japão, e penso que fazemos em outras partes do mundo.
BN: É interessante o que o Pe. Nuno disse há pouco: ser ao mesmo tempo mais japonesa e mais universal.
PN: Eu penso que o desafio de qualquer Igreja, em qualquer sítio, é estar enraizada no local onde está, mas com esta abertura ao mundo, para além das fronteiras.
“Na Igreja ninguém é estrangeiro, portanto não existe a necessidade de fazer esta distinção. Mas fazemos. Fazíamos e fazemos no Japão, e penso que fazemos em outras partes do mundo.”
BN: Em 2010, o Pe. Nuno foi estudar em Roma. O que estudou e como é que essa experiência contribuiu para a sua missão no Japão?
PN: Fui estudar teologia fundamental. Há duas visões de teologia fundamental: aquela que dá o fundamento à teologia dogmática ou aquela que, antes da teologia dogmática, entra em diálogo com o mundo onde estamos. Eu fui sobretudo nessa perspetiva, de entrar em diálogo com o mundo antes de fazer o dogma. Revendo a minha experiência no Japão, tentei estudar algo que fosse útil e que me permitisse revisitar o tempo que lá estive como missionário. Então, o tema da minha tese foi: “Como dizer o Deus cristão no Japão”. Para nós, dizer Deus não é questão. É uma coisa natural. Mas, no Japão, ao longo da história, houve várias opções para dizer Deus, inclusive no período recente. Então, tentei perceber, através de uma investigação histórica, como é que se pode fazer um tal cristianismo inculturado, ou, neste caso, uma linguagem inculturada da fé. O segundo desafio, no doutoramento, foi tentar criar pontos de diálogo com o budismo; para tal, peguei no conceito budista da origem interdependente das coisas e tentei pôr em diálogo com o nosso conceito de criação, através da perspetiva de Teilhard de Chardin, fazendo uma tentativa de diálogo destas duas tradições religiosas.
25 anos em missão: gratidão
BN: Quais os momentos mais marcantes destes 25 anos em missão?
PN: Quando terminei os primeiros 10 anos e regressei para estudar, foi marcante perceber que, apesar de ser pouco tempo e das minhas dificuldades na língua, eu consegui transmitir alguma coisa. Após o doutoramento, ver que em termos académicos consegui fazer uma síntese desta experiência. E, ao voltar para o Japão, quando o arcebispo me deu a responsabilidade desta grande paróquia da diocese de Osaka.

BN: E que ensinamentos retirou destas experiências ao longo destes anos?
PN: Uma coisa que me faz pensar é que a dificuldade que nós temos em criar pontes entre as culturas, as línguas, as tradições, as religiões, é uma dificuldade real. Porque é mais fácil construirmos um muro do que construirmos uma ponte. Esta dificuldade e todo este esforço que nos é pedido ao construí-las, são as dificuldades que nós encontramos, no dia-a-dia, no contacto com as diferentes culturas e com as diferentes religiões. Mas, se construirmos as pontes, isso permite que as pessoas passem de um lado para o outro. E, apesar de ser um esforço grande, penso que é um esforço meritório.
BN: Se tivesse de resumir o Japão e os japoneses numa palavra, qual seria?
PN: Nunca pensei nisso! [surpresa] Seriam várias, da própria língua japonesa. Mas aquela que todas as pessoas, mesmo em Portugal, conhecem é a palavra «arigatô», que significa, literalmente, “difícil de existir”. Transmite o reconhecimento e a gratidão de que tudo aquilo pelo qual estamos agradecidos seria difícil de existir sem aqueles que nos deram isso. Esse sentido de gratidão é uma coisa que existe muito na cultura japonesa e que eu penso que é uma coisa que todos nós deveríamos ter mais na nossa cultura, e no nosso dia-a-dia.
BN: Já se considera, pelo menos, um pouco japonês?
PN: Não, porque, por um lado, sou português; nasci aqui e essa é a cultura que me formou e à qual posso chamar de minha cultura materna. Por outro lado, há a dificuldade da cultura japonesa em aceitar o estrangeiro. Não é fácil que um estrangeiro seja aceite por um japonês como japonês. Por isso, também não há necessidade de fazer esse esforço. Porém, há muitas coisas da cultura japonesa que me foram influenciando ao longo destes 25 anos e, se calhar, eu já penso ou reajo de um modo diferente do que antes de ir para o Japão. Não é ser japonês, mas é ser influenciado pelos japoneses. Sobretudo, uma coisa que noto em mim: a língua japonesa obriga-nos a escutar, pois tem o verbo no final; e, esse verbo, sendo positivo ou negativo, pode alterar todo o sentido da frase. Portanto, sem escutarmos a frase até o final, não sabemos se vai ser sim ou não. Pode ser um sim, no início, mas se a frase terminar com um verbo negativo, é um não. Temos de ouvir a frase toda até o fim para responder àquilo que nos dizem. Penso que, depois deste tempo de viver ali, se tornou mais presente em mim, esta necessidade, esta atitude de escuta. Mas não deixo de ser português e, portanto, continuo a falar mais do que devia.


