(Pe. Rui Ferreira) – As eleições gerais de 9 de outubro deixaram Moçambique mergulhado no caos e na violência. O candidato presidencial Venâncio Mondlane tem liderado os protestos que já provocaram, pelo menos, mais de uma centena de mortos e milhares de feridos e presos. O Pe. Anastácio Jorge, Superior Regional dos Missionários da Boa Nova, que vive em Maputo há mais de 30 anos, partilha connosco o dia-a-dia num país a “ferro e fogo”.

Boa Nova (BN): Como descreve a situação atual em Moçambique, especialmente em Maputo, após as eleições de 9 de outubro de 2024?
Pe. Anastácio Jorge (AJ): Entrámos, nos últimos dias, na dita “quarta fase da quarta etapa” de manifestações agora generalizadas em quase todo o país; manifestações inicialmente ligadas à “verdade eleitoral”, mas que com o tempo e o “impacto surpresa e mobilizador” da rua (muita violência, quer por parte da polícia e militares, quer por parte de grupos de manifestantes) têm degenerado em diversos atos de vandalismo.
A situação deve-se a vários fatores que, pouco a pouco, se foram conjugando: a não aceitação dos resultados eleitorais divulgados pela Comissão Nacional de eleições, o assassinato de dois políticos da oposição (o grande barril de pólvora!), a violência policial, as desigualdades socias e a extrema pobreza de milhões contra a extrema riqueza de poucos; e, nos últimos dias, verificam-se manifestações muito perto de zonas de grandes projetos, pois as pessoas foram retiradas das suas terras para darem lugar aos mega projetos [como, por exemplo, o do gás natural, em Cabo Delgado] com indemnizações insignificantes; as pessoas rapidamente gastaram o valor compensatório e agora não têm como sobreviver (pois ficaram sem as suas terras), devido ao alto nível de desemprego. Deu-se um acumular de situações vindas de longe e agora é uma “explosão social”, que atinge primeiro os pobres, os excluídos, os que sobrevivem do mercado informal, mas também as escolas e universidades, as diversas instituições e até, muito provavelmente, as divisões internas dentro do próprio poder [Frelimo].

BN: Como se explica tanta violência e repressão por parte do governo e das forças de segurança contra o povo moçambicano, com mortos, feridos, prisões e desaparecimentos?
AJ: Penso que julgavam que com resposta violenta resolviam a situação em dois ou três dias, como era costume… A polícia, no geral, parece ter deficiente formação em diversas áreas e os militares provavelmente não estariam preparados para responder a este tipo de protestos; por outro lado, manifestações anteriores foram sempre resolvidas à custa da força das armas e à generalização do medo. No caso atual, as redes sociais são um meio eficaz de comunicação e “põem a nu” a violência, por vezes injustificada, da polícia e dos militares. Um dos maiores erros foi o modo como as autoridades foram comunicando, com uma linguagem verbal que atiçou ainda mais a ira popular. Os polícias e os militares também sentem na pele as dificuldades da vida do povo e, por vezes, aqui e ali, notou-se alguma divisão e até desorientação. Pelos vídeos que foram circulando, percebe-se que o povo perdeu o medo e, em muitos casos, a raiva e as emoções acabaram por alastrar. Jovens e mulheres foram os grandes rostos destas manifestações, mas não deixou de me impressionar o envolvimento de centenas e centenas de crianças e adolescentes, tanto em manifestações, como em atos de vandalismo.
BN: Estas eleições foram “a gota de água” para o povo moçambicano?
AJ: Já havia sinais, até nas últimas eleições autárquicas; sentia-se nos jovens uma vontade de mudança e um enorme cansaço nas pessoas, pelo ambiente de pobreza e desemprego (fala-se que 80% dos jovens estão desempregados!) e pelo enorme custo de vida. Por outro lado, creio que o próprio partido do Poder ficou muito amarrado a uma geração de manutenção do sistema e, talvez mesmo, capturado por interesses de grupos organizados e do “lambebotismo” (como aqui se diz!), afastado e desfasado da vida do povo e do seu quotidiano, apresentando por vezes estatísticas de progresso e desenvolvimento que eram depois ridicularizadas nas redes sociais.
Nesta fase das manifestações têm sido vandalizadas as sedes do partido do Poder, em zonas, onde historicamente este foi sempre o grande e quase único vencedor, com “vitórias retumbantes”, e isso não deixa de ser muito estranho. Portanto, agora já não é só a “verdade eleitoral” que se exige, mas é também o “vir ao de cima” toda uma série de chagas sociais acumuladas ao longo de muitos e muitos anos, uma espécie de “vulcão social”.
BN: A Conferência Episcopal de Moçambique (CEM) teve um posicionamento muito forte e profético diante do que afirmou ser (mais) uma fraude eleitoral do atual regime moçambicano. O que pode mais fazer a Igreja Católica em Moçambique para ajudar a restabelecer a paz e para que a dignidade e a liberdade do povo moçambicano sejam respeitadas?
AJ: A Igreja deve manter-se firme na sua posição, unida e coesa, continuar a procurar o diálogo e a fazer pontes, sabendo e tendo consciência que a sua carta publicada a respeito das eleições não caiu bem numa das partes. E deve procurar interagir com outros sectores da sociedade e até outras Igrejas para se fazer um caminho (isto vai demorar!) e constituir uma voz conjunta e alargada que envolva académicos, atores sociais e agentes do mundo da cultura e artes, das instituições que reflectem há muito tempo sobre a realidade moçambicana, dos Institutos Religiosos e Missionários, em Moçambique, que têm estado silenciosos sobre este assunto, dos jovens e também de figuras políticas dos vários quadrantes políticos, mesmo da Frelimo, pois, mesmo aí, há quem deseje outros caminhos e outras soluções, que advogam a mudança e reconhecem erros graves da governação. Nos debates, em alguns meios de comunicação social, percebe-se que há muita gente, que pensa sem medo. Sem diálogo não haverá paz!

BN: Como vive hoje, no meio desta confusão e violência, o cidadão comum moçambicano, quando sabemos que muitos moçambicanos dependem da economia informal para comer e sobreviver?
AJ: Vivem pior e com maiores dificuldades e a pobreza vai aumentar (até já há fome em muitas casas e falta de medicamentos), mas estão convencidos que desta vez vão conseguir e estão dispostos a tudo; e preferem sacrificar, custe o que custar, estes meses a viverem mais 5 anos debaixo de um poder absoluto, pois segundo os resultados eleitorais proclamados pela Comissão Nacional de Eleições, o partido no poder atingiu a maior maioria de sempre no Parlamento, nos Municípios e nas Assembleias Municipais.
BN: E agora: qual o caminho para a justiça e a paz, num país que se deveria estar a preparar para celebrar os 50 anos da sua independência?
AJ: Que o horizonte da celebração dos 50 anos de independência seja uma oportunidade para repensar e reorganizar o país. Por outro lado, o próprio modo como hoje se lê e encara essa independência já divide os manifestantes do Poder. A solução, a meu ver, seria constituir um governo de unidade nacional que prepare eleições e reorganize todo o processo eleitoral de raiz (nova Comissão Nacional de Eleições, novo recenseamento eleitoral de raiz…), mas há sectores que nem querem ouvir falar disso e não há dinheiro para isso. E outros da oposição que só querem a verdade eleitoral.


