Pe. Rui Ferreira – A Revista Boa Nova conversou com o Cónego António Janela, do Patriarcado de Lisboa, que participou na 1ª Vigília da Paz (1969, igreja de S. Domingos) e vivenciou os acontecimentos da Capela do Rato na passagem de ano de 1972/73, tendo sido detido pela PIDE e libertado por ação direta do Patriarca António Ribeiro.

Volvidos 50 anos, é imperativo recordar a Revolução do 25 de Abril de 1974. Em grande parte, a história de Abril está ainda por escrever; por exemplo, no que toca ao contributo dos cristãos e da Igreja na luta pela liberdade, pela paz nas antigas colónias e pela transição para a democracia. Na busca de respostas, fomos ao encontro do cónego António Janela do Patriarcado de Lisboa que participou na 1ª Vigília da Paz (1969, igreja de S. Domingos) e vivenciou os acontecimentos da Capela do Rato na passagem de ano de 1972/73, tendo sido detido pela PIDE e libertado por ação direta do Patriarca António Ribeiro. Da longa conversa, extraímos algumas luzes sobre o papel da Igreja no período que antecedeu e no que se seguiu ao 25 de Abril. Agradecemos ao cónego Janela o acolhimento e a partilha da sua experiência de vida sobre algumas figuras e factos fundamentais da nossa história recente.
Boa Nova (BN): Nasceu em Luanda, em 1941. Que consciência tinha do regime colonial?
Cónego Janela (CJ): Tenho que confessar-lhe uma coisa. A primeira vez que apertei a mão a um africano foi ao nosso cozinheiro. Os meus vizinhos foram todos para o Tarrafal. Mas, aos 14 anos, se tinha consciência… Tomei consciência de que a primeira vez que apertei a mão ao cozinheiro foi quando me despedi.
Militância na Ação Católica e Vocação Sacerdotal
BN: Aos 14 anos veio para a “Metrópole”, em Lisboa, e foi aluno dos liceus de referência da cidade, onde mais tarde, num deles, viria a ser professor de Moral. Qual a importância da ação católica no seu percurso de vida?
CJ: Marcou-me muito. Estou convencido que a ação católica, numa ecclesiologia pré-conciliar, foi uma experiência de sinodalidade. Nós éramos apóstolos com mandato da hierarquia. Na eclesiologia da Lumen Gentium (Concílio Vaticano II), somos apóstolos pela nossa condição batismal. Isso muda. Mas havia uma estrutura em que, de facto, o laicado, ainda que mandatado, tinha uma comunhão, uma participação e uma missão. O sínodo agora tem essa trilogia. A comunhão e a participação estão obtidas. Falta uma coisa: a missão. A Igreja ainda está muito voltada para Deus. Uma Igreja em saída é uma Igreja que assume o mundo.

Escolar Católica (JEC). «A vivência da ação católica foi o “caldinho” de despertar-me
para pôr-me ao serviço. Foi o meu “segue-Me”!». Foto: Cónego António Janela
No sexto ano, o professor era o Pe. Mafra, o assistente da JEC (Juventude Escolar Católica). No sétimo, convidou-me para a direção nacional. Portanto, foi a militância eclesial: «se é preciso, padres, para pôr isto em marcha, estou disponível». A vivência da ação católica foi o “caldinho” de despertar-me para pôr-me ao serviço. Foi o meu “segue-Me”!
BN: Numa entrevista, disse que a decisão de entrar para o seminário «foi o ato mais livre da minha vida».
CJ: Ah, isso foi! O homem não nasce livre, torna-se livre; caminha para ela [a liberdade]. É diferente. Somos livres três/quatro vezes na vida; ou seja, tomar uma decisão que vai-nos comprometer para sempre. Nunca posso dizer que senti qualquer pressão. Foi livre. A liberdade é uma decisão inicial.
«Nunca fomos tão livres como quando estivemos sob o domínio dos nazis» (Sartre). Porquê? Porque quando estivemos no domínio dos nazis, nós sabíamos o que queriamos. Quando é que o escravo começa a libertar-se das grilhetas? Quando lhas cortam? Não.
BN: Quando deseja a liberdade.
CJ: Exatamente. Aí, começa o desejo da libertação. É isso que eu entendo por liberdade.
BN: Fez a sua formação sacerdotal nos anos efervescentes do pré-Concílio.
CJ: Entrei em 1958 [no seminário]. Morre o Pio XII e veio um senhor baixinho que diziam que era bruto (risos)… feio (risos)… que era um avô… e que era de passagem. E foi quem deu a volta a isto. João XXIII foi marcante! Agora, o meu papa é Paulo VI. Foram tempos muito difíceis. João XXIII abriu as janelas, mas depois a ventania foi muita e o Paulo VI apanhou com ela. Mas, isso é muito importante: vivi a preparação do Concílio.
“A Igreja ainda está muito voltada para Deus. Uma Igreja em saída é uma Igreja que assume o mundo.”
1º Vigília da Paz (1969) e Professor de Religião e Moral
BN: O Pe. Janela é muito associado à Vigília da Paz na Capela do Rato, no fim-de-ano de 1972. Penso que foi até homenageado…
CJ: Ah, eu não fui nada! O homenageado foi quem de direito, o Pe. Alberto Neto, a propósito da ocupação da Capela do Rato na transição de 1972 para 1973, na Vigília da Paz. Eu estive na primeira Vigília da Paz, em 1969, na igreja de S. Domingos. E depois também sofri as consequências de ter lá estado. Aquilo que poderíamos chamar a solução, “ponta-pé pela escada acima”: mandaram-me para Roma. Já não podia continuar a ser professor de religião e moral, porque tinha um processo disciplinar. Que não foi só por causa da Vigília da Paz…
Foi também por causa da abertura marcelista. No meu quarto ano de professor pensei que deveria ser uma ótima ocasião de iniciação à democracia, à participação e à corresponsabilização. Na escolha do chefe de turma, achei que seria um momento adequado para começarmos, de facto, a assumir uma participação ativa. Era como que o “ensaio” de uma apresentação de candidatura com um programa para a turma. Bom, isso foi mal interpretado.
Mas houve outra coisa. Um dos professores do liceu foi escolhido para Comissário Nacional da Mocidade Portuguesa. Eu tinha muito boas relações com ele. Ele queria que eu fosse à tomada de posse e, depois, a um jantar de confraternização. Eu achei, em consciência, que lhe tinha de escrever uma carta a dizer-lhe porquê não me sentia capaz de participar na tomada de posse. Essa carta dei a ler ao meu pai que me disse: «Ai! não faças isso, não faças isso…» (risos). Quem não viveu aqueles anos não imagina como era uma sociedade controlada. Isto tudo é anterior à Capela do Rato.
“Eu estive na primeira Vigília da Paz, em 1969, na igreja de S. Domingos. E depois também sofri as consequências de ter lá estado. Aquilo que poderíamos chamar a solução, “ponta-pé pela escada acima”: mandaram-me para Roma.”

O Pe. Alberto Neto e a Capela do Rato
BN:Há também a figura do Pe. Alberto Neto.
CJ: Essa é a grande figura… o meu mestre. É a minha grande referência. Ainda hoje… Eu tenho as fotografias deles no meu quarto, porque, quando os olho, lembro-me sempre de os invocar. Eu acredito que estes estão vivos!
BN: Logo após a ordenação, o Pe. Janela…
CJ: O meu destino era ser professor de Moral em Setúbal. O meu curso organizou, antes da ordenação, um encontro em Sintra, ouvindo leigos e padres sobre vários problemas. E o Alberto foi lá falar (ele já tinha escolhido os que iriam integrar a sua equipa para reformar a presença da Religião e Moral e o dinamismo da animação dentro dos liceus). Ele foi lá e esgotou o tempo que lhe tínhamos dado. E eu disse-lhe: «Ó, Sr. Padre, com todo o respeito, agora temos que passar ao diálogo». Ele ficou admirado e foi dizer [ao Cardeal Cerejeira]: «eu queria aquele». Eu fiquei na equipa e depois fui sucessor dele.
BN: O Pe. Alberto era o capelão da Capela do Rato.
CJ: Era, porque a Capela do Rato era a capela da JEC. De facto, o Alberto é que foi o grande protagonista, embora doente em casa [pneumonia]. Distribuiu as missas por três de nós: o João Seabra Dinis, o Armindo Garcia e eu. O João Seabra Dinis foi celebrar a missa de sábado, vespertina, e foi nessa altura que a Xixão Moita, mais o António Matos Ferreira e mais uns três ou quatro, propuseram uma vigília contra a Guerra Colonial. Mas as celebrações continuaram. A ocupação começa no final da missa de sábado [dia 30].
O D. António Ribeiro, que ainda não era cardeal (Isto é muito importante!), chamou-me logo no sábado e disse-me que eu ficava a tomar conta da Capela. Celebrámos as missas de sábado e de domingo; com ocupação, mas sem interrupção nenhuma. Na tarde do domingo, a PIDE intervém com a polícia antiterrorista, prendeu os que lá estavam e selaram a capela.
O Patriarca Ribeiro, chama-me e diz-me: «olhe, que você celebra a missa da meia-noite». «Mas fecharam». «Vá ao Governo Civil». Eu fui ao Governo Civil, que disse: «Não. Não pode celebrar». Fui para a capela que ainda não estava selada e comecei a missa a dizer: «estamos aqui; estamos proibidos de celebrar; mas eu vou celebrar por ordem do meu Patriarca». E combinou-se com o Patriarca que todas as instruções eram [dadas] pelo telefone, porque assim eles já ficavam a saber (risos) de quem eram as ordens. Isto foi muito importante, porque no processo da PIDE, quando perguntaram: «Mas quem é que mandou?». «O Sr. Patriarca» (risos). Não podia ter continuado o processo sem ouvir o Patriarca, porque ele é que mandou fazer tudo aquilo.

BN: Portanto, o Patriarca Ribeiro teve uma posição muito firme.
CJ: Claro. Repare que o Governo ainda não tinha sido deitado abaixo. Portanto, a pressão para que ele não fosse cardeal seria muita. Era a primeira grande oposição, tirando o D. António Ferreira Gomes.
BN: Trata-se de uma questão de liberdade. Liberdade religiosa, liberdade de culto, liberdade de consciência…
CJ: É que eles [a PIDE] não podiam invadir… uma vez que tinha sido autorizada a vigília, portanto, eu celebrei. No dia seguinte, antes da Missa das 11h, fui ler a homilia ao Patriarca, que me disse: «eu até fiz uma homilia mais forte, em Arroios». Mas, quando acabou a Missa, prenderam uma data de gente, em Arroios.
O que é que acontece? Chego à capela, antes das 11h, está um polícia à porta e as portas seladas. Eu vou ter com o polícia: «o senhor está aqui a cumprir ordens do seu superior. Eu estou aqui a cumprir ordens do meu superior. Ora, o meu superior e o seu superior estão neste momento em Belém. O meu superior, o Patriarca António Ribeiro, a apresentar cumprimentos ao seu superior, o Almirante Tomás. Portanto, se eles se entendem, nós também nos vamos entender. Eu vou entrar porque o meu superior me mandou entrar. O senhor depois fará o que entender, porque o seu superior não permite que o senhor me deixe entrar». Quebrei os selos, entrei, abri as portas e as pessoas juntaram-se.
No final da missa, estava de costas e ouço uma voz, que era o capitão Maltez, aquela figura sinistra, que tinha desbaratado as manifestações dos estudantes de 61. «O sr. Padre podia-me acompanhar?». Eu viro-me e digo: «assim como estou, ou posso-me desparamentar?». «Pode-se desparamentar». Levaram-nos para a PIDE e começaram os interrogatórios, como se vê no cinema, a luz em cima da gente. Havia o polícia bom e o polícia mau. O tempo foi passando… Eram umas quatro horas da manhã e a pergunta era sempre: «quem é que mandou?». «O Patriarca D. António Ribeiro». Eles sabiam, ouviram [nas escutas telefónicas]. Até que vi, ao fundo, o secretário do Sr. Patriarca: «pronto, isto vai acabar». O Patriarca estava cá em baixo, à espera no carro e tinha avisado: «ou o Padre Janela sai ou eu vou daqui para a casa do primeiro-ministro, que era o Marcello [Caetano]». Então, fui com o Patriarca para a casa dele, nos Mártires. E foi a primeira vez que comi uma refeição preparada por um Patriarca. Foi na cozinha, eu estava a fazer o relato oral do que se tinha passado. O Patriarca foi, de facto, muito corajoso.
O Lento Amanhecer para a Liberdade
BN: Entretanto, veio o 25 de abril de 1974. Foi uma mudança da noite para o dia?
CJ: Na mudança da noite para o dia, o nascer do sol é lento. Aconteceu uma revolução militar, que tem antecedentes. E, depois da revolução militar, há aquilo a que chamamos a revolução cultural… Temos ainda os famosos “três D’s”. A descolonização aconteceu, mas com um preço grande (guerras civis,…). O desenvolvimento… estávamos à frente não sei de quantos e agora já só temos um atrás de nós. E a democracia?…
BN: A Igreja e o Evangelho são fontes de liberdade. Como?
CJ: Muitas vezes, por testemunho até da própria vida. Nunca houve tantos mártires como atualmente. O Evangelho é fonte de liberdade, mas uma liberdade que é dar sentido à situação em que se vive. Nós, homens de fé, temos uma vantagem muito grande. Temos uma coisa que se chama esperança. O caso da Nicarágua. Quem há-de cair? É o Ortega. Condenou o bispo a trinta anos… E vai cair. A mesma coisa com o Putin. Como caiu o Stalin? Como caiu o Hitler? É uma questão de tempo. Mas, neste entretanto… Há mártires! É preciso testemunhas, mártires, que se mantenham firmes.
BN: Na atual mudança epocal, o que podemos fazer para criar uma sociedade mais justa e mais fraterna, onde a dignidade de cada pessoa seja promovida?
CJ: Não perder a esperança. Não é por acaso que o tema fundamental do próximo Jubileu é a esperança. Isto pode estar mal, mas p’ra pior já basta assim. Portanto, vou tentar fazer o que posso.


