
(Dra. Eva Dias e Pe. Rui Ferreira) – O Pe. Aníbal dos Anjos João nasceu a 13 de outubro de 1925, em S. Joanico, Vimioso, diocese de Bragança-Miranda. Ao celebrar 100 anos de vida, com 84 anos de Sociedade Missionária e quase 75 de sacerdócio missionário, contagia-nos com a sua jovialidade e bom humor, ao falar da sua vida doada à missão, em Moçambique e no Brasil. Dos desafios enfrentados ao fundar uma igreja de raiz, em Cabo Delgado, na atual diocese de Pemba, ao recomeço, com 50 anos, na diocese de Umuarama, no Paraná, Brasil, o Pe. Aníbal mantém aceso o desejo de ser missionário até ao fim. Atualmente vive no Seminário da Boa Nova, em Belo Horizonte, Minas Gerais, onde é missionário mais pelo sofrimento e pela oração do que pelo trabalho, mas sempre com muita alegria e fé.
Boa Nova (BN): Como surgiu a sua vocação sacerdotal missionária?
Pe. Aníbal João (PAJ): O padre de Carção, Vimioso, era seminarista; estava no fim do curso, e andava por lá a fazer propaganda do seminário. E foi ele que realmente abriu no meu coração a vontade de ir para o Seminário das Missões. Ao todo, fomos cinco do mesmo concelho, de Vimioso; não no mesmo ano. Entre os quais, o meu irmão, padre Casimiro, que também está no Brasil, no Maranhão, tem 85 anos, e trabalha como um jovem. Ele nasceu no meu primeiro ano do seminário e entrou quando eu fiz a primeira missa. Ficámos sempre muito unidos, um ao outro. Claro, irmãos! E, além disso, porque considerei e considero cada vez mais a Sociedade Missionária como a minha segunda família. Muito amada!
BN: Quais os aspetos mais marcantes da sua formação na Sociedade Missionária?
PAJ: Olha, isso não desaparece da nossa alma, do nosso pensamento, da nossa vida, tanto mais que a gente agora deu um pulo muito grande, agora é tão diferente a formação, não é? Tão diferente a vida do seminário! Lá, nós éramos 30, no primeiro ano que eu entrei. Depois, no ano em que me ordenei, o Casimiro foi para o seminário. E o seu primeiro formador fui eu, em Tomar. Depois fui com ele para Cernache do Bonjardim, como professor e prefeito. Depois fui para a filosofia, em Cucujães; e, para a teologia também em Cucujães. Sempre unidos um ao outro. Outro aspeto também que gostaria de focar: tenho duas irmãs que praticamente são freiras, além dos dois padres.
BN: Em 1957, foi nomeado para a, então, recém-criada Diocese de Porto Amélia [Pemba], em Moçambique. Como é que acolheu este envio e que realidade encontrou quando chegou a Porto Amélia?
PAJ: Fui colocado na missão do Mariri. Foi no mesmo ano que o bispo D. José dos Santos Garcia foi nomeado. Então, eu tive muita alegria por ir logo para a África, que era nosso desejo. E ficar logo com o bispo que nós amávamos, D. José dos Santos Garcia. Nunca mais o esquecemos, trabalhámos muito juntos. Foi uma alegria que realmente passou pelo nosso coração e dura até hoje. A recordação do D. José dos Santos Garcia, homem trabalhador, dinâmico. Fez tudo ali! Formou uma diocese nova, cheia de tudo aquilo que era preciso: seminários, escola de professores, seminário menor, seminário de teologia. Houve até uma questão: os bispos não queriam deixar que fundasse o seminário de teologia. Mas ele, D. José, foi até o fim, e ganhou a questão. E ordenou bastantes padres, graças a Deus. Eu estive cinco anos lá no seminário como reitor. É um momento que também não esqueço. Formação de padres nativos, padres indígenas, porque era uma questão que nós tínhamos. Nós procurámos nos adaptar, não é? Procurámos realmente trabalhar como verdadeiros missionários, não discriminando preto nem branco, nem nada.
BN: Foi, depois, enviado para Macomia, no norte de Cabo Delgado.
PAJ: Quando fui nomeado para Macomia, Macomia não tinha missão. A primeira foi aberta com a minha presença, do Pe. Paulo Lopes e do Ir. Messias; fomos os três. Quando íamos no caminho, uns europeus começaram a brincar connosco e disseram: «Padres, vocês para onde vão?». «Nós vamos para Macomia». Eis a resposta deles: «Vocês, quando quiserem ver um branco, olhem para o espelho». Não me esqueço dessa história.
Nós procurámos realmente trabalhar muito, porque os macondes, onde estávamos, são muito fiéis a Deus. Eles começaram a aprender o catecismo na Tanzânia. Então, espalharam-se por ali e fizeram muito bem. Quando nós chegámos, já lá estavam os Padres Monfortinos, da Holanda, que trabalhavam muito bem. Nós os substituímos, inclusive no seminário, nos primeiros anos. Isso aí que foi lindo, foi muito bonito, lindo demais. Gostámos muito.
BN: Fale-nos mais da experiência como fundador e superior da missão de Macomia, durante 10 anos?
PAJ: Os primeiros anos foram de muito trabalho, muito sofrimento. Quando chegámos lá, não tinha nada! Não havia eletricidade, não havia água, nem casa. A casa onde ficámos não estava ainda completamente acabada. O nosso primeiro trabalho foi realmente o trabalho social e familiar necessário. Vivemos muito tempo sem água canalizada. Tínhamos de ir longe buscar água. E também não havia eletricidade. Depois, havia outra grande dificuldade. Quando chovia, nos meses de chuva, nós não podíamos sair dali, porque não havia pontes. Havia rios, mas os rios não tinham pontes – passados três ou quatro anos, fizeram uma ponte. Nós ficávamos realmente fechados ali, não podíamos ir para lado nenhum. E a comida tinha de ser comprada para um ano inteiro, porque no tempo das chuvas não dava para ir comprar à cidade. E a cidade, Porto Amélia, ficava a 200 km.

Depois do Mariri, o meu maior trabalho foi a construção. Primeiro foi a construção da casa paroquial. Depois, a construção da igreja, da qual eu tenho muitas saudades, muita felicidade. Foi um autêntico milagre! Quem construiu tudo, dirigiu tudo, praticamente do princípio ao fim, foi o padre Aníbal! O padre Paulo dirigia a missão. Andava pelas comunidades. E eu queria também acompanhar, mas tinha de fazer a construção. Tinha de dar conta do recado que o bispo nos encomendou. E aí, então, eu queria aprender maconde. Aprendi um pouquinho, porque tinha de estar no trabalho, de manhã até à noite. Não havia trabalhadores habilitados. Os trabalhos todos, desde a fundação, nós fazíamos tudo. Não comprámos lajota, não comprámos brita… ia com o camião buscar longe a água para a construção. Então, foram três anos para construir a casa paroquial e a igreja. Com muita pena, a missão foi atacada e destruída três vezes pelos bandidos [terroristas].
Aquela terra era muito animada, havia cristãos muito bons. Aconteceu um processo muito grande de conversão naquela região. E agora, ultimamente, sofreu tanto com as guerras: com a guerra colonial um pouco, com a guerra civil muito mais. A guerra civil estragou tudo!
BN: Entretanto, há um acontecimento que muda tudo. Em 25 de abril de 1974, ocorreu a revolução em Portugal. Como é que viveram esse momento de viragem em Moçambique, e particularmente em Cabo Delgado, Porto Amélia?
PAJ: Foi com tristeza, não precisávamos ir tão longe. Portugal fez muitas injustiças, claro! Todas as nações fazem. Todo mundo faz, mas nunca foi exagerado. Procurou trabalhar sempre, ajudar o povo, procurando realmente o bem para todos. E nós ficámos muito tristes quando apareceram esses dois movimentos, a FRELIMO e a RENAMO. Mas há males que vêm por bem! Graças a Deus, foi uma melhoria para a nação. Nós não queríamos sair de lá! Não queríamos abandonar aquele território que era nosso, como também Angola e os outros territórios nacionais. Mas não foi para mal, foi para bem. Estão independentes, e Portugal está no seu lugar.
BN: Porque saiu de Moçambique? Não tinha condições de continuar, não era seguro?
PAJ: Nós tivemos nessas guerras de Angola e Moçambique cinco padres assassinados.
BN: Pe. Rocha, Pe. Cristóvão e o Pe. Alírio…
PAJ: O Pe. Cristóvão é do meu ano, ele e o Pe. José Alves. Ele está sepultado em Moçambique e o Pe. José Alves está sepultado em Campinas, no Brasil. Expulsavam ou prendiam, quase todos estiveram presos. A mim e ao Pe. Alírio não conseguiram prender, mas sofremos muito.
BN: Correu então o risco de ser preso?
PAJ: Sim. Depois o bispo disse: “Quem quiser sair, sai; quem quiser ficar, fica”. E nós vimos que a coisa não ia para a frente. Pegaram em todos os padres e colocaram-nos todos em Porto Amélia, na cidade. Tudo ali junto. O que é que estávamos ali a fazer? Não nos deixavam fazer nada, estávamos sempre vigiados, não podíamos exercer o ministério. Não podíamos fazer nada no meio do povo. Estavam todos a olhar para nós. Era horrível.