Pe. Salvador Bila: O caminho de maturidade de Moçambique percorre-se revisitando e reescrevendo o projecto de nação

O Pe. Salvador Bila, da Arquidiocese de Maputo, atual Director do Secretariado da Conferência Episcopal de Moçambique (CEM), continua a sonhar com um Moçambique próspero economicamente e integral. Tal sonho comanda a vida desta jovem nação, onde os jovens são a larga maioria.

A visita do Papa Francisco, em 2019, ajudou a reavivar a esperança de um povo que sabe sorrir e que anseia por um futuro de justiça, paz e fraternidade. Foto: LUSA

Boa Nova (BN): Qual é para si o significado dos 50 Anos de Moçambique enquanto nação livre e independente?

Pe. Salvador Bila (SB): A efeméride dos 50 anos de independência de Moçambique é um marco importante na história do país. Moçambique apresenta-se como uma jovem nação, em história e demografia, que na natural complexidade do processo de crescimento e consolidação, vai trilhando o seu caminho, entre avanços e retrocessos, rumo àquela sonhada prosperidade social que beneficie todos sem parcialidades nem condicionalismos. Uma palavra de gratidão e reconhecimento é devida a todos aqueles jovens moçambicanos que corajosamente lutaram pelo sonho da liberdade. Souberam renunciar aos seus pequenos e confinados sonhos pessoais para sonhar e pensar mais largamente. Moçambique independente nasceu como parto coletivo e popular de heróis e heroínas, conhecidos e anónimos para dar vida a uma nação soberana.

BN: Na sua visão quais os sonhos cumpridos e aqueles que ainda estão por cumprir?

SB: A história sucessiva à independência tem demonstrado que mais difícil do que alcançar a independência é construir uma nação em que a diversidade seja vista como riqueza; as vozes dissonantes sejam escutadas e integradas na harmonia da família moçambicana; o poder seja posto ao serviço dos mais frágeis; a pluralidade ideológica, política, partidária e religiosa seja apreciada como condição necessária para o desenvolvimento. A fotografia de Moçambique no momento atual é bastante tenebrosa. As recentes manifestações populares pós-eleitorais foram apenas o último sinal de uma história de um prolongado grito popular inaudito. Tristemente, a história de Moçambique independente é marcada por um rasto de sangue de patriotas, dissidentes do regime. A crueldade da longa guerra civil (1977-1992) manifestou-se não só na extensão do tempo, mas sobretudo no extermínio de cerca de um milhão e meio de pessoas e na dispersão de cinco milhões de deslocados. Este “trauma nacional” é agudizado pelas contínuas injustiças sociais e um permanente clima de insegurança e instabilidade. 

A capa da Boa Nova de março de 1975, a três meses da independência de Moçambique, continua a projectar 50 anos depois o sonho da jovem nação e da sua juventude.

A assinatura dos Acordos Gerais de Paz em 1992 constituiu o resultado de uma rede nacional e internacional de concertações em prol da paz. Foi a prova viva de que o envolvimento construtivo de todos os moçambicanos pode levar a conquistas nacionais em benefício de todos. A paz fez sonhar um país que finalmente podia caminhar baseado no diálogo e na convivência fraterna. As eleições multipartidárias tinham o objectivo de devolver ao povo a sua legítima soberania de delegar aos seus eleitos o poder de governar na paz e na justiça. O sonho não se realizou: todos os processos eleitorais de Moçambique desde então até ao presente têm sido marcados por violência, mortes e fraudes.

O Estado não consegue realizar a sua vocação natural de oferecer serviços dignos para o desenvolvimento dos moçambicanos. Serviços básicos como alimentação, saúde e educação continuam uma miragem. O melhor dos 50 anos é a vitória ténue e frágil sobre o constante espectro da guerra civil e o vibrante desejo de encontrar um caminho de paz, reconciliação e desenvolvimento. A “frelimização” do estado, as aberrantes assimetrias sociais, a corrupção, o nepotismo, a pesada e ineficiente máquina estatal, reconciliação superficial, a insegurança urbana, a insurgência no Norte e a inconsistência democrática são ameaças fortes ao desenvolvimento de Moçambique.

BN: Como alcançar mais maturidade, liberdade e desenvolvimento?

SB: O caminho da maturidade de Moçambique como nação soberana rumo à consolidação da liberdade e do desenvolvimento percorre-se revisitando e reescrevendo o projeto de nação. É imprescindível enriquecer o projecto inicial de 1975, com todas as contribuições necessárias para responder às inspirações hodiernas dos moçambicanos. Questões como a redistribuição justa das riquezas, o desenvolvimento humano, atenção particular à juventude, reforço das liberdades e consolidação da soberania territorial são inadiáveis. Apesar de todas as dificuldades objectivas, passadas e presentes, eu sonho ainda com um Moçambique próspero economicamente e integral. Um dos elementos recorrentes ao longo dos cinquenta anos de independência de Moçambique é a capacidade de encontrar consensos. Moçambique conseguiu chegar aos acordos de paz; e na era democrática tem sempre encontrado caminhos para apaziguar as tensões eleitorais. Os moçambicanos sabem dialogar e colocar os interesses do país acima de qualquer outra agenda. 

BN: Qual o papel da Igreja (Católica) no processo de reconciliação nacional e como esta foi afetada pelo regime que se seguiu à Independência? 

SB: O papel da Igreja Católica no processo de pacificação e reconciliação em Moçambique tem sido muito significativo, não obstante a hostilidade do regime comunista adotado depois da independência e a perseguição, das quais as nacionalizações dos bens da Igreja são um dos exemplos. A Igreja católica tem acompanhado o país nas diversas fases da sua história, caminhando sempre com os segmentos sociais mais vulneráveis e promovendo o bem-comum.

Logo nos primeiros anos de independência (1977), a Igreja definiu-se como “Igreja ministerial”, uma família em Cristo alicerçada na escuta da Palavra de Deus; unida na partilha da diversidade de carismas, dons e serviços, não só no seu interior, mas com todo o povo aflito por tantas adversidades. Quando eclodiu a guerra civil, a Igreja testemunhou corajosamente a sua missão. Em condições de grande risco, muitos missionários, catequistas e leigos doaram a própria vida em testemunho do Cristo partilhando a sorte de tantos moçambicanos vítimas da guerra fratricida. Ainda durante a guerra, em colaboração com outras confissões, a Igreja procurou reunir os beligerantes para o diálogo de paz. Tais esforços culminaram com a assinatura dos acordos gerais de paz. Depois dos acordos, a Igreja empenhou-se muito para a preservação da paz, constantemente ameaçada pelo incumprimento dos acordos e na reconstrução do país.

A Conferência Episcopal de Moçambique tem sido sempre muito contundente na denúncia das injustiças sociais em Moçambique. Através das suas cartas pastorais, os bispos de Moçambique têm alertado sobre a “frelimização” do estado, a corrupção, a precariedade das condições de vida das faixas sociais mais desfavorecidos.

Ainda hoje, a Igreja continua a promover o desenvolvimento humano, a paz, a justiça e a reconciliação. A visita do Papa Francisco em 2019 recolocou estes assuntos na agenda nacional. Infelizmente, os recentes acontecimentos pós-eleitorais comprovam de maneira inequívoca que ainda há um longo caminho a percorrer para a consolidação da paz, reconciliação e justiça social.