PÓRTICO | Partir do coração e crescer em humanidade

(Pe. Rui Ferreira, diretor da Revista Boa Nova) – «O coração tem razões que a razão desconhece» (Blaise Pascal).

A crescente presença dos sistemas da chamada inteligência artificial (IA) nos mais variados domínios da nossa vida é um dos aspectos mais salientes e desafiantes da mudança epocal que atravessamos. Abrem-se novas oportunidades, mas surgem igualmente grandes riscos. 

Sempre atento à realidade, já na Mensagem para o Dia Mundial da Paz, o Papa Francisco tinha refletido sobre o impacto das formas de IA, lembrando que «a inteligência é expressão da dignidade que nos foi dada pelo Criador, que nos fez à sua imagem e semelhança (cf. Gn 1, 26) e nos tornou capazes, através da liberdade e do conhecimento, de responder ao seu amor». A Mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais (12 de maio) é também dedicada à «Inteligência artificial e sabedoria do coração: para uma comunicação plenamente humana».

Porquê tanta preocupação do líder da Igreja Católica com a IA? É que as formas de IA fazem parte de uma verdadeira revolução em curso que nos afecta a todos e coloca-nos diante questões fundamentais: o que é o ser humano e qual a sua especificidade na era das inteligências artificiais? E como podemos permanecer verdadeiramente humanos orientando para o bem a revolução em curso?

Partir do coração e crescer em humanidade. Talvez possamos sintetizar assim a proposta de Francisco. As máquinas sempre serão máquinas. Podem ter motor ou processador, mas nunca um coração de carne. Só com a sabedoria do coração e o seu olhar espiritual «poderemos ler e interpretar a novidade do nosso tempo e descobrir o caminho para uma comunicação plenamente humana». A sabedoria do coração, dom do Espírito Santo, «permite ver as coisas com os olhos de Deus, compreender as interligações, as situações, os acontecimentos e descobrir o seu sentido». 

A questão do sentido é mesmo fundamental. De facto, as máquinas podem ter uma capacidade quase ilimitada de analisar dados, mas só o homem pode decifrar o seu significado e o seu valor (ético, estético…). Paulatinamente, fomos perdendo o sentido do limite. A consciência da nossa finitude, fragilidade e precariedade, assim como das demais criaturas e criação, é fundamental para um desenvolvimento harmonioso. «Reconhecer e aceitar o próprio limite de criatura é condição indispensável para que o homem acolha a plenitude como uma dádiva». Para tal, é necessário humildade.  

«Examinai tudo, guardai o que é bom» (1ª Carta aos Tessalonicenses 5, 21). Nesta como noutras áreas, a questão decisiva é ética. Quem é que desenvolve e controla o uso da IA? Estará ela ao serviço do bem e do desenvolvimento de toda a família humana? Ou, pelo contrário, criará «novas castas baseadas no domínio informativo, gerando novas formas de exploração e desigualdade»? «A resposta não está escrita; depende de nós». Compete-nos a nós estarmos atentos e informados, para com a sabedoria do coração, decidirmos e crescermos juntos em humanidade.

(Este pórtico foi publicado na edição de maio de 2024)