(Paulo Aido) – A apresentação do Relatório da Fundação AIS sobre a Liberdade Religiosa no Mundo, que decorreu ontem à tarde em Lisboa, ficou marcado pelo lançamento de uma petição internacional, promovida pela Ajuda à Igreja que Sofre, de apelo aos governos e organizações internacionais para assegurarem a efectiva liberdade de pensamento, consciência e religião de todas as pessoas. D. Rui Valério, que participou na apresentação do Relatório, aplaudiu a iniciativa, sublinhando que “nada pior para a proliferação do mal do que tapar a cara, fechar os olhos” à realidade.

Casa cheia, ontem à tarde, 21 de Outubro, no Centro Nacional da Cultura, ao Chiado, em Lisboa, para a apresentação em Portugal do Relatório da Fundação AIS sobre a Liberdade Religiosa no Mundo. O documento, produzido por uma equipa internacional de especialistas, foi comentado por Nuno Rogeiro, analista político, mas a sessão ficou marcada pelas palavras de D. Rui Valério.
O Patriarca de Lisboa, que agradeceu o trabalho da Fundação AIS, disse que a leitura do Relatório “escandaliza-nos”. “Em pleno século XXI, somos surpreendidos, escandalosamente surpreendidos, com o relatório, pois percebemos que não são só números, aquilo que está publicado, não são só cores, vermelho e laranja – que identificam os graus de perseguição nos vários países –, mas são pessoas reais, são seres humanos”, referiu.
“E cada história, cada história de perseguição, cada história de recusa da liberdade para alguém viver a sua fé, para se expressar livremente enquanto crente, cada uma dessas histórias é uma história de martírio escrita a sangue.“
D. Rui Valério
Lembrando que a dimensão religiosa é, porventura, a dimensão de maior intimidade de cada pessoa, porque se situa no âmbito da consciência, o Patriarca de Lisboa recordou que, “quando se persegue Deus, acaba-se sempre por perseguir o ser humano”.
D. Rui Valério concluiu a sua intervenção com uma palavra de esperança, invocando “uma grande máxima da Igreja, que diz que sangue de mártires é semente de cristãos, de homens livres”.
“Esta é uma petição profética”
No final da sessão, falando aos jornalistas presentes, o Patriarca de Lisboa destacou ainda a importância da petição lançada também ontem, e a nível global, pela Fundação AIS, para que os governos e as organizações internacionais tenham um papel mais activo na defesa das populações no que diz respeito à prática livre da sua fé.
“É muito importante a petição para nos tirar da indiferença, porque nos compromete, nos obriga a fazer uma assinatura, a colocarmos ali o nosso nome, a darmos a cara nesta questão que é tal fulcral”, referiu. “É uma maneira também de nos sentirmos ainda mais comprometidos com a defesa e salvaguarda do outro enquanto outro. Ninguém pode ser indiferente a este drama”, e por isso, esta petição “tem um carácter profundamente pedagógico”, referiu, concluindo que “nada pior para a proliferação do mal do que tapar a cara, voltar para o lado, fechar os olhos”.
“Esta petição tem esse mérito, levando-me a concluir que é bem mais do que um simples acto de cidadania. Esta petição tem um carácter profético, é uma petição profética.”
Aumento de intolerância em África
Nuno Rogeiro, que apresentou o Relatório, começou por explicar que trata sempre a fundação pontifícia por “ais”, não soletrando as letras como normalmente acontece, porque assim, diz, soa mais próximo ao seu verdadeiro significado, por parecer “um pedido de socorro”.
Durante a sua intervenção, Rogeiro sublinhou que o Relatório apresenta vários exemplos do que considera ser “o aumento da intolerância” no mundo face à prática livre da religião, e apontou o continente africano como a zona do globo onde isso está a ser mais acentuado, levando-o a falar no jihadismo e na perseguição armada contra os cristãos.
Este é um tema a que Nuno Rogeiro tem dedicado a sua própria investigação – exemplo disso é o livro ‘O Cabo do Medo’, sobre a violência jihadista em Cabo Delgado, no norte de Moçambique – o que lhe permitiu falar no “financiamento” dos grupos armados que reivindicam um Islão radical.
“A grande questão é saber se alguns Estados não estão a financiar esses grupos” através, por exemplo, de organizações estatais, “as chamadas fundações de caridade”, ou por “negócios ilícitos”, através de “fundos secretos”, embora Nuno Rogeiro tenha recordado que é necessário separar aquilo que é a “jihad espiritual”, que busca um melhoramento pessoal, da jihad terrorista que se traduz em actos violentos.
O comentador sublinhou ainda a importância de haver um estudo como o da Fundação AIS, “credível”, que analisa de forma “equilibrada e objectiva” a questão da perseguição religiosa em todo o mundo e sobre todas as crenças, apesar de ter criticado a inclusão da Ucrânia, como um dos países onde, no período em análise, segundo a AIS, se registaram violações à liberdade de culto. “É uma injustiça a Ucrânia estar na mesma categoria ‘laranja’ – uma das cores, a par do vermelho, em que os países estão assinalados face ao grau de perseguição religiosa – em que está a Rússia”, justificando as decisões tomadas pelo governo de Kiev contra a Igreja Ortodoxa, ligada ao Patriarcado de Moscovo, como “uma defesa perante uma agressão”, e não como uma questão que possa ser entendida de liberdade religiosa.
Cultivar a hospitalidade, combater a indiferença
A apresentação do Relatório ficou marcada ainda pelas palavras do Padre José Frazão, jesuíta, director da Revista Brotéria, que assinalou a importância de se combater a “indiferença”. “O Relatório da Fundação AIS ajuda-nos a tomar consciência das coisas e a fazer-nos sair da ‘bolha’ em que vivemos, até porque hoje somos confrontados com o acolhimento de pessoas de outras comunidades religiosas”.
Para isso, disse o sacerdote, é preciso “cultivar a hospitalidade do diferente”, de forma que se possa “acolher e integrar as minorias culturais e religiosas” em Portugal. “A questão da liberdade religiosa leva-nos a ter de entender, compreender também a fatia de verdade que o outro traz consigo”, sublinhou.
Catarina Martins de Bettencourt, directora do secretariado nacional da Fundação AIS, destacou, por sua vez, que o Relatório funciona como “um alerta para o mundo”, no que diz respeito à liberdade de culto. “Ao publicarmos este Relatório – disse –, temos como objectivo apresentar informações factuais e objectivas sobre a situação global e actual da liberdade religiosa no mundo, mas também as perspectivas sobre este direito para os próximos anos”.
Catarina Bettencourt, que apresentou nas linhas gerais a Petição que a fundação pontifícia lançou também ontem a nível global, lembrou a importância da mobilização de todos para que os governos e as organizações internacionais “assegurem a protecção efectiva do Artigo 18º da Declaração Universal dos Direitos Humanos”, que garante a todas as pessoas, a liberdade de pensamento, de consciência e também de religião. “Não podemos continuar a ignorar esta grave crise de Direitos Humanos”, concluiu.
No dia de ontem a apresentação do Relatório da Fundação AIS registou uma grande atenção mediática, com destaque para o programa “Contra Corrente”, na Rádio Observador, que debateu durante cerca de duas horas as implicações da questão da liberdade religiosa. Catarina Martins de Bettencourt e D. Alexandre Palma, participaram no programa que teve o título, sugestivo, de que vivemos num “mundo onde ser cristão é cada vez mais perigoso”.
Na ocasião, o bispo auxiliar no Patriarcado de Lisboa, saudou a Fundação AIS “porque não desiste de trazer este tema para a praça pública”, e lembrou que “todos nós perdemos sempre quando uma das liberdades é diminuída”. “E isso acontece especialmente com a liberdade religiosa”, referiu.