Reflexões de um missionário em Cabo Delgado (II)

(Pe. Eduardo A. Roca Oliver, missionário em Pemba) – É difícil saber exatamente quantas guerras há hoje no mundo. Certo é que são demais! Muitas são ignoradas e esquecidas. É o caso da guerra que massacra o povo de Cabo Delgado, em Moçambique, há vários anos. A diocese de Pemba tem uma relação umbilical com os Missionários da Boa Nova. Em 1957, D. José dos Santos Garcia (SMBN) foi o seu primeiro bispo; atrás dele, seguiram várias dezenas de Missionários da Boa Nova. O Pe. Eduardo Roca Oliver, sacerdote fidei donum espanhol, trabalha em Mahate, na periferia de Pemba, há 12 anos. Antes, tinha estado mais de uma dezena de anos em Angola. Este missionário, que deixou nascer África dentro de si, partilha connosco as suas reflexões sobre o drama humano de Cabo Delgado. 

O Pe. Eduardo Roca Oliver está há 12 anos em Mahate, na periferia de Pemba, no meio dos mais pequeninos e desvalidos. Foto: Pe. Eduardo A. Roca Oliver

Resumiria a experiência mais humana de Cabo Delgado com uma palavra: desvalimento. Lembro-me da oração que saiu da boca de uma refugiada angolana, fugida da guerra em 1999: “Só Deus é que fica, só Deus é que nos pode salvar”. É o apelo que resta aos que perderam tudo. Enquanto te restar alguma coisa, ainda há esperança, mesmo que seja muito pouca. Quando se perdeu tudo, então Deus é absoluto, porque é a única coisa que nos resta. Esta experiência só pode ser vivida com fé, porque sem ela receio que só reste o desespero e a morte.

Nos últimos quatro anos, para muitas das pessoas mais pobres de Cabo Delgado, em Moçambique, esta experiência de desamparo tornou-se cada vez mais real. Perderam a vida de entes queridos, perderam a terra que era o seu sustento, a sua casa, a sua protecção, a sua saúde e a sua paz interior, e agora vivem a clamar por misericórdia… já não têm fôlego para reclamar justiça. Passaram cinco anos desde que tudo começou, e hoje só vêem duas coisas: uma, que não há paz, que esta guerra parece que nunca mais vai acabar, e que não sabem como se pode viver com medo constante; outra, que alguns conseguiram ter o que antes não tinham, e ninguém sabe como o conseguiram, embora a província continue igual ou pior, sem oportunidades de trabalho, sem dignidade na educação ou na saúde, impondo um modo de vida onde só o dinheiro conta….

Assim, para os de baixo, os que não interessam, é uma situação de desamparo e medo que parece não ter fim à vista. Desamparo porque a ameaça de islamização forçada é real, porque nenhuma força de segurança conseguiu controlar a situação nem garantir qualquer estabilidade em Cabo delgado, e ninguém pode confiar nelas para restabelecer a paz; desamparo porque parece que as autoridades locais são, pelo menos, coniventes com o que está a acontecer, como se um objectivo último velado fosse eliminar a presença cristã nesta província; desamparo porque para os refugiados não há outra saída senão regressar à sua terra sob ameaça e ataques contínuos, e tentar cultivar a terra, mas sem saber como se pode suportar tal vida; desamparo porque é impossível não ver que outros estão a lucrar com esta guerra, e sem perceber como, estão a conseguir beneficiar dela…

Para muitas das pessoas mais pobres de Cabo Delgado, a experiência de desamparo torna-se cada vez mais real. Na foto, ajuda alimentar para os deslocados da guerra, na paróquia de Mahate, em Pemba. Foto: Pe. Eduardo A. Roca Oliver

Tantas questões se colocam e inquietam os espíritos, e o medo ganha terreno… então, para sobreviver, tudo parece justificar-se. Enquanto nós, que estamos à frente das comunidades, que esperam de nós esperança e testemunho, tentamos acreditar contra toda a esperança, e continuamos a impulsionar os nossos projectos sociais e as nossas escolas, animando sobretudo os jovens a terem a coragem de ir em frente, a esperarem um novo amanhecer, o silêncio daqueles que deveriam assegurar a vida das pessoas e a corrupção que se tornou o meio habitual de obter lucros em todas as esferas da vida, corroem tudo, desmoralizam qualquer iniciativa, ensombram qualquer boa vontade.

Em situações ameaçadoras de guerra, ciclones ou tempestades, a informação acalma sempre o espírito. Mesmo que o prognóstico não seja bom, como na doença, é melhor saber do que não saber, porque saber torna-nos mais autoconfiantes, permite-nos medir as nossas reacções e planear as nossas acções. Mas quando o silêncio é a norma, para além do sentimento de indiferença e desrespeito que implica, é também impossível prever a reação das pessoas. Na situação de guerra de baixa intensidade em Cabo Delgado, como é chamada, não é possível encontrar qualquer informação oficial para explicar e tranquilizar a sociedade. Presumivelmente, existe uma proibição expressa de informar e apenas os canais não oficiais dizem alguma coisa.

À medida que a ajuda humanitária cessa e se torna muito mais selectiva e orientada para projectos de desenvolvimento, a situação dos refugiados, antigos e novos, aumenta em risco e vulnerabilidade. Só quem conseguiu plantar alguma coisa é que consegue ter o que comer, e só graças aos pequenos negócios de venda ambulante, à revenda de fruta, pão ou outros produtos de primeira necessidade é que o impacto da fome pode ser atenuado. E, nesta realidade, o sentimento de estar só, abandonado à sua sorte, é o mais intenso e presente.

E, no entanto, há o contraponto contraditório de pessoas que constroem casas, compram terrenos e abrem negócios, mas ninguém sabe como; o aumento de supermercados, de farmácias e de postos de combustível, em Pemba, provoca inquietações, ao mesmo tempo que aumentam o fosso cada vez maior entre os mais pobres e os mais ricos… por seu lado, os jovens, maioritariamente muçulmanos, continuam a deixar-se recrutar por grupos radicais, pela simples razão de encontrarem ali uma razão para as suas vidas. Não há futuro, não há horizonte, não parece haver nenhum a curto prazo… e dentro desses grupos somos alguém, temos uma missão e algo por que lutar, a violência parece ser um preço justo a pagar.

As escolas, as instituições de ensino, tentam equilibrar, oferecem projectos a longo prazo, mas a corrupção, a falta de formação e de responsabilidade fazem com que ninguém acredite verdadeiramente na possibilidade de aprender algo que valha a pena. Os funcionários públicos, no meio de uma administração que impõe encargos burocráticos insuportáveis aos pobres, fizeram das suas funções uma oportunidade para extorquir e obter o que os seus salários não permitem. E o pior é que essa prática foi normalizada, como se fosse o merecido ajuste da sociedade para com aqueles que exercem qualquer tipo de serviço público…. Situações de tamanha vulnerabilidade, como a saúde, a necessidade de se submeter a uma cirurgia ou de obter um tratamento necessário, tornaram-se moeda de troca para funcionários públicos que negam impiedosamente cuidados básicos de urgência a quem não tem dinheiro. Numa tal realidade, a promessa de uma sociedade onde estas coisas não acontecem, onde se abre o Corão e se apela à Sharia, onde os corruptos serão punidos, justifica o empenhamento dos jovens em grupos violentos.

É certo que a pobreza em Moçambique não é exclusiva de Cabo Delgado, trata-se de situações que perpassam o tecido social africano, mas este impacto específico da pobreza aqui está associado, por um lado, à estratégia político-religiosa do Islão em África, que se apresenta como um apelo a uma Jihad internacional que tem de transformar a África no grande continente islâmico e, por outro, à revolução de costumes que prega contra o Ocidente, para quem os pobres ainda importam muito pouco.

O trabalho de longo prazo com a juventude é fundamental para dar horizontes de esperança e vencer as propostas de ódio e fanatismo. Foto: Pe. Eduardo A. Roca Oliver

Passados estes anos, a situação social em Cabo Delgado não melhorou; para a maioria da população, o desafio é sobreviver. A resposta militar do Estado à insurreição e a teia de corrupção criada pela chegada da ajuda humanitária exacerbaram os sentimentos de ódio da população e os grupos jihadistas estão a capitalizar esses sentimentos. Conhecendo como ninguém as zonas florestais, os grupos jihadistas conseguem escapar às forças de segurança, tanto nacionais como internacionais, e, como já se sabia no início, mas muito mais agora, as comunidades ao longo da costa de Cabo Delgado estão a tornar-se as suas novas bases, fontes de recursos e de protecção, uma perspectiva que garante a sua sobrevivência, uma vez que as pessoas não podem ser combatidas.

Em Pemba, sentimos nos últimos dias que os ataques estão agora a ocorrer muito mais perto do Norte e cada vez mais perto do Sul da cidade. As comunidades contam as condições que os chefes armados lhes impõem: converter-se ao Islão, pagar o imposto para entrar nas zonas que lhes pertencem, deixar esta terra para quem não se converter, ou preparar-se para a morte. E esta Jihad, como dizem, só acabará quando o mundo acabar. É grande o sentimento de impotência e de abandono das comunidades não muçulmanas nas zonas reivindicadas territorialmente pelos grupos jihadistas, como Mocímboa da Praia, Palma, Quissanga… Alguns denunciam políticas locais de segregação, dificultando a compra de terrenos por não muçulmanos…. Tudo indica que as comunidades muçulmanas imbuídas de radicalismo dificilmente aceitarão os que são diferentes de outra forma que não seja subjugando-os. E para as estruturas do governo local, a saída dos não-muçulmanos de Cabo Delgado parece ser uma consequência inesperadamente agradável. No entanto, pensar que estas pretensões político-religiosas radicais ficarão satisfeitas com Cabo Delgado é ignorar o alcance do plano que a Jihad internacional pretende levar a cabo.

Neste sentido, as igrejas cristãs precisam de fazer uma frente comum, porque o desafio de este Islão radicalizado, não pode ser subestimado. A Jihad, tal como a entendem aqui, é a pretensão islamizante a qualquer preço, e se é verdade que existem movimentos islâmicos não violentos, também é verdade que, tal como são geralmente interpretados, não podem renunciar ao proselitismo e não podem aceitar uma base secular comum que permita a cada religião ser e oferecer-se livremente e com igualdade de oportunidades. De facto, a lição de não proselitismo a que o Papa Francisco apelou continua a ser um assunto não aprendido, também para os cristãos. Um secularismo saudável e uma consciência inter-religiosa são elementos que temos de cultivar, assimilar e promover, se quisermos que haja paz neste mundo.