(Pe. Eduardo A. Roca Oliver, missionário em Pemba) – Continuamos a partilhar as reflexões de um missionário em Cabo Delgado. A guerra no Norte de Moçambique é um dos muitos conflitos quase ignorados e esquecidos do nosso mundo. O Pe. Eduardo Roca aponta a necessidade de construir a paz no respeito e no diálogo, começando pelos líderes religiosos.

Os líderes religiosos podem não ser capazes de resolver problemas sociais com estas complexidades, mas podemos ajudar e facilitar, insistir em atitudes que permitam que o bem avance apesar das dificuldades e das forças contrárias que teimam em não trazer a paz. Trabalhar nestes contextos sitiados pelo jihadismo exige que não percamos de vista o sofrimento social, as vítimas humanas, a destruição das comunidades. É realmente importante recordar que o problema é este e nada mais, e nada do que provoca estas coisas deve ser apoiado pelos líderes religiosos. Há atores sociais que podem estar interessados na guerra, porque os seus interesses de poder são económicos, políticos ou mesmo religiosos, mas os líderes religiosos devem estar concentrados nas vítimas, no sofrimento e na paz. O que está em causa é uma medida de humanidade que seja digna de todos e que permita a todos viver em conjunto, e os líderes religiosos devem ser garantes dessa humanidade. Esta base humana deve colocar-nos numa nova perspectiva inter-religiosa. Para nós, líderes religiosos, há algumas atitudes prévias que temos de educar e conquistar, sem as quais corremos o risco de nos tornarmos também nós causa de conflitos:
1. Precisamos ser uma presença fiel e escutadora no meio de nossas comunidades. Abertura, acolhimento respeitoso dos outros (sobretudo em emergências), escuta (desinteressada), paciência (as comunidades só respondem depois de anos desta presença: é preciso ser fiel às pessoas), são estas as atitudes que abrem a porta inter-religiosa. Só esta presença fiel cria confiança. Não existe uma receita para o diálogo, muito menos para o diálogo inter-religioso; não existem estratégias políticas eficazes; ele baseia-se na confiança mútua que é criada pela amizade social. Existem filosofias de diálogo, mas nenhuma delas funciona sem que antes se crie um laço de confiança.

2. Temos de começar por renunciar ao proselitismo. Este tem sido um dos maiores desafios para mim, pessoal e profissionalmente: trabalhar persistentemente na educação de que uma estrutura inter-religiosa (um tipo de consciência) é algo diferente do que cada um de nós é separadamente, e que não implica uma renúncia à sua própria identidade. Isto é muito difícil de conseguir, porque todos nós estamos imbuídos de preconceitos de identidade. Tenho muitas vezes de me lembrar a mim próprio e aos meus irmãos cristãos e muçulmanos desta atitude de renúncia ao proselitismo: uma consciência inter-religiosa afirma que se eu me tornar muçulmano ou se um muçulmano que trabalha comigo se tornar cristão, a nossa presença (como força social de intervenção pacificadora) deixa imediatamente de ter qualquer significado, porque então já não temos nada a comunicar aos outros. A mesma ideia pode ser formulada de outra forma: trata-se de aprender a sentir-se cristão sem deixar de ser muçulmano, a sentir-se muçulmano, sem deixar de ser cristão; e este sentimento compreendido ajuda a estar melhor na sua própria identidade.
3. Temos de assumir uma atitude global de respeito ativo, que é muito mais do que tolerância. A tolerância permite que os outros façam o seu próprio caminho, mas evita-se o encontro, não há fecundidade e não se cria nada de novo; apenas se conservam os elementos. O respeito faz-nos percorrer o mesmo caminho sendo diferentes, é mantido pela amizade social (recordemos o exemplo do Papa Francisco e do Grande Imã de Al-Azar, Ahmed Al-Tayyed), o respeito faz-nos identificar objetivos e metas comuns, faz-nos preocupar com os outros, faz-nos sentir as suas aflições; o respeito é ativo quando me leva a comprometer-me com a causa dos outros, com o seu sofrimento. É a fórmula que nos deixou Voltaire, um dos pensadores do Iluminismo, falando dos crentes: não acredito em Deus, mas darei a minha vida para que aqueles que acreditam possam viver a sua fé. Esta é a base do constitucionalismo e de qualquer forma de república.
4. É preciso também lembrar que a caridade é a forma mais elevada da política. É necessário colocar a caridade como princípio de entendimento entre as religiões. É quando a religião perde a caridade que surgem os conflitos inter-religiosos. O problema é mais o bem que deixamos de fazer do que o mal que fazemos. Os religiosos podem não se entender, por aquilo em que acreditam (pelos conteúdos da sua fé), mas entendem-se sempre em termos de prática religiosa: caridade, compaixão, atenção aos pobres e aos necessitados, consolação, acolhimento. É importante para as religiões colocarmo-nos na ortopraxis e não na ortodoxia. A ortopraxis é a caridade que nos une a todos.

5. É necessário assumir a paciência como uma formatação do coração: é uma virtude interior, mas não é desilusão, abandono ou ignorância, não é desistir porque é impossível. Trata-se de esperar pelo momento certo, aceitar que somos falíveis, integrar o fracasso, estar disposto a perder tudo o que se conseguiu e, no entanto, persistir, recomeçar, tantas vezes quantas as necessárias. Insistir como a água dos rios que não para, corre por muito tempo, e arredonda as pedras. Uma das forças do mundo globalizado e da tecnologia é a pressa, convencendo-nos de que podemos ter tudo agora. Os nossos corações tornam-se ímpios quando guiados pela pressa: tornam-se exigentes e tirânicos. Mas o preço do liberalismo e do capitalismo ocidentais é a destruição das identidades. O Ocidente vence porque uniformiza; uniformiza porque impõe uma identidade consumista e liberal, que apenas mantém alguma estética à superfície. Temos de aprender a proteger o nosso coração, aprender a ter paciência e sabedoria, aprender a esperar, sem desistir.
6. No contexto da missão, é fundamental inculturar (contextualizar): Identificar e conhecer o contexto africano, as sinergias históricas, culturais e sociais, os pontos de comunicação e de contacto existentes, é essencial para que qualquer estratégia (mesmo política ou religiosa) seja incorporada. Isto tem um enorme impacto quando se trata de provocar conflitos: não comer da mesma panela significa que a pessoa excluída da alimentação está condenada a morrer de fome (os discursos de ódio nas comunidades muçulmanas do Norte de Moçambique tinham este efeito: não comer na mesma panela que um cristão…). O contexto africano mais tradicional não permite a exclusão de algumas pessoas da refeição por pertencerem a uma religião ou ideologia diferente… (fazer isso não é africano): é necessário cozinhar um pouco mais de comida para aqueles que podem chegar enquanto estão na estrada, a comida não é preparada apenas para aqueles que têm uma certa identidade social, mas para qualquer pessoa que possa chegar. As religiões têm de inculturar os seus princípios e práticas para não quebrarem as pedras angulares sagradas que há muito são eficazes na vida africana.
(Continua)


