(Pe. Eduardo A. Roca Oliver, missionário em Pemba) – Neste texto partilhamos as últimas reflexões do Pe. Eduardo Roca, missionário em Cabo Delgado, em torno dos conflitos no norte de Moçambique. A situação periclitante no território foi ensejo para o comentário sobre a necessidade de construir a paz fundada no respeito e no diálogo, com o contributo dos líderes religiosos.

7. É urgente assumir um pluralismo radical, não apenas numa dimensão, também nas dimensões política, cultural e étnica e religiosa, porque essa diversidade é de justiça. Multipartidarismo não é democracia, diz-se na política. Pluralismo ainda não é reconhecimento do outro. Há necessidade de um debate franco e aberto sobre as formas políticas africanas de implementação da democracia. É necessário procurar novas formas, mais abrangentes, mais partilhadas, capazes de integrar a riqueza plural multicultural e linguística, com princípios mais claros de subsidiariedade e solidariedade, com reformas constitucionais que reconheçam politicamente os atores e as diferenças sociais. O modelo ocidental não é pluralista, apenas uniformiza. Isto tem de ser vivido na base, nas comunidades. Os discursos de ódio que estão na origem da violência começam nas comunidades: não poder comer a comida de um cristão é condenar a pessoa a morrer de fome em África… O professor Chabane Mutiua, vale a pena recordar, fala de recuperar a idade de ouro da história, que não é recuperar a pureza ideológica religiosa no seio das comunidades, mas a ortopraxia, as atitudes de aceitação, de respeito e de amizade social que caracterizaram as nossas comunidades. É esta a pureza do pluralismo que temos de recuperar.
8. Ao nível da gestão social, é preciso implementar uma política de mínimos de Justiça. A estrutura política tem de mudar para mais e melhor concretização da república (os conteúdos democráticos): mais reconhecimento e mais empoderamento para todos, para os que sofrem a marginalização, o abandono político das dinâmicas de desenvolvimento do país. Para quem não tem lugar nem voz, só há duas saídas: o extermínio (ser exterminado) ou a violência. A política precisa de se centrar no ideal de justiça capaz de possibilitar a todos e a cada um, a cada pessoa e a cada povo, os caminhos da legítima realização. Mas a justiça é perante os nossos olhos o que deve ser sempre prioritário, porque é justo que todos possam ter, porque ir além disso já não é um objetivo da política. A política existe para servir o povo e não para se servir do povo. A responsabilidade política consiste em garantir a todos o acesso aos meios de uma vida digna (escola, trabalho, religião). Quando o objetivo não é a justiça, a política preocupa-se apenas com estratégias que visam os interesses e o enriquecimento individual ou de grupo.

9. É preciso descobrir e reconhecer as referências humanas das comunidades (homens e mulheres que são reconhecidos nas suas comunidades por outros como tendo determinadas capacidades). Despertar capacidades (a falta de cidadania, de sociedade civil, de capacidades adormecidas é uma característica pós-colonial). Uma sociedade mantém-se quando os contratos sociais que cada Estado deve proteger permitem as alianças dos cidadãos. As alianças são fontes de moralização social, de garantias éticas. As alianças são servidas pela convicção e não pelo dinheiro. Os líderes religiosos devem trabalhar neste sentido e, se possível, não nos devemos colocar como referentes, mas ajudar a capacitar e a reconhecer os outros.
10. Precisamos de estratégias pedagógicas comuns e humanizadoras. No âmbito inter-religioso, quatro palavras são úteis: encontro, reconhecimento, diálogo, ação. Provocar o encontro porque podemos estar juntos sem nos encontrarmos. Reconhecer significa dar a palavra e abrir espaço em mim para a palavra do outro, que passa assim de passivo a ativo, de espectador a protagonista. O diálogo, isto é, aceitar, não impor, e permitir, através da palavra, resolver o conflito, encontrar o terreno comum que vale a pena para todos, no mundo de todos, não apenas no nosso. Estrategicamente, o melhor argumento ajuda a sair de um impasse, mas socialmente, devemos tentar incluir o bem e o bom de cada proposta. Agir, que não pode ser para conduzir à afirmação de alguns, não pode ser um tributo exigido pela vitória de alguns. Quando assim é, significa que estamos a falhar socialmente. É necessário que os tributos sejam plurais, comuns, e que protejam sobretudo os espaços que são de todos. Só um discurso laico bem conduzido nos pode garantir esta comunalidade de pessoas e bens.
11. Finalmente, os líderes religiosos, nestes contextos de violência, precisam de trabalhar para a desradicalização e para a prevenção nas comunidades: encontrar um objetivo na vida ajuda a reconverter esse dinamismo que radicalizou (religião, ideologia política…). Trata-se de dar aos jovens a possibilidade de escolherem objetivos para as suas vidas, de serem capazes de realizar projetos pessoais. Os objetivos da vida identificam-nos como pessoas; sem objetivos a vida é um desperdício. É essencial preocupar-se e cuidar: é quando nos preocupamos com alguém, nos preocupamos com essa pessoa, que o milagre de acreditar nas próprias capacidades e de encontrar um objetivo pode acontecer. As pessoas sentem-se afirmadas quando nos preocupamos com elas. Isto também permite que se façam alianças nas comunidades. As parcerias têm o poder de dar sentido e significado ao que as pessoas fazem. As parcerias não se baseiam em acordos em papel, mas na amizade social.

Outro aspeto importante aqui são os contra-discursos do ódio. É necessário que determinemos o sentido da religião com uma definição comum e partilhada, para que não haja espaço para o ódio, a exclusão, a violência, ou mesmo para qualquer tipo de julgamento em nome de Deus. O abuso da religião ocorre quando a utilizamos para outros fins, que não os religiosos. O objetivo da religião é convencer as pessoas, através do testemunho, a viverem em santidade e a salvarem as suas almas; tudo o que for além disso já não é religião. A partir desta mesma chave para o sentido da religião, há uma necessidade de conduzir a reconversões religiosas. A tarefa dos líderes religiosos é identificar os elementos que são considerados religiosos e que não o são, e assim levar a uma conversão da experiência religiosa deturpada. São também importantes as questões ligadas à interpretação das Sagradas Escrituras: como é que as Escrituras nos salvam? Como fazer uma leitura atualizada das Sagradas Escrituras? Como interpretar certos textos sagrados tão marcados pelo contexto histórico em que foram escritos? Que valor dar ao texto sagrado quando ele é considerado a própria Palavra de Deus?
A experiência de Cabo Delgado ensinou-nos como são perigosos os contextos sem educação formal. Não só para as crianças, mas também para os adultos, como as mulheres e os idosos. As estratégias educativas a todos os níveis são fundamentais, e a orientação privilegiada deve ser inter-religiosa e intercultural, por muito que custe aceitá-lo para as religiões. Por conseguinte, a institucionalização das celebrações inter-religiosas, dos centros inter-religiosos, dos projetos inter-religiosos e das estruturas sociais devem tornar-se objetivos políticos prioritários.
Por fim, os líderes religiosos devem, em conjunto, rezar pela paz. Estamos em dívida com Deus, só Ele nos pode dar a paz, temos de procurar Deus dentro de nós para que Ele nos dê a paz. Tudo o que procuramos e que não é Deus confronta e cria divisão e inimizade. Não devemos confundir Deus com os nossos próprios interesses de poder. É preciso que nos preocupemos com os pobres, porque a injustiça é a raiz profunda da guerra e da violência, como testemunham as nossas escrituras sagradas. Enquanto a injustiça continuar, não podemos fingir que temos um mundo pacífico. Acabar com um mundo de ricos e pobres é a única saída ética para qualquer violência social.


