No momento em que alguma ajuda humanitária começou a entrar em Gaza, com uma parcimónia como se tivesse todo o tempo do mundo e não houvesse mais de dois milhões a passar fome, devido ao cerco e ao bloqueio por parte dos militares israelitas, a pergunta há dias colocada pelo jornal francês La Vie faz todo o sentido: “porque é que o Ocidente se recusa a usar a palavra genocídio e não se organiza para fazer cumprir naquele território o direito internacional?

Para responder e refletir sobre o que já foi caraterizado como “cumplicidade” com os crimes de guerra e contra a humanidade, aquele jornal ouviu Michael Lynk, um professor e jurista canadiano, que foi durante seis anos (de 2016 a 2022) relator especial das Nações Unidas sobre a situação dos direitos humanos nos territórios palestinianos ocupados. Nessa entrevista conduzida pela jornalista Anne Guion, Lynk, que foi professor associado de direito na Universidade Western Ontario, abre também perspetivas sobre possíveis saídas da situação atual, em Gaza e na Cisjordânia.
Interrogado sobre os fatores que aparentemente bloqueiam e como que paralisam os governos ocidentais, aquele especialista faz referência a cinco:
- À cabeça surge a “influência do lobby israelita”, que é, para o entrevistado, “significativa na Europa, mas extraordinariamente poderosa” nos EUA, país onde abrange as igrejas evangélicas.
- Outro fator é o medo das consequências de se oporem aos EUA por parte dos países ocidentais, dada a “aliança política e militar excecional” entre os EUA e Israel.
- O terceiro fator é a persistência nos países ocidentais de “uma visão romântica de Israel e da sua fundação como resposta ao Holocausto europeu”.
- O quarto fator tem a ver com “os preconceitos de natureza racial profundamente enraizados nas nossas sociedades”, que permite compreender a disparidade entre a reação à invasão da Ucrânia, por exemplo, e a “relativa indiferença face ao sofrimento palestiniano”.
- Por fim, haveria a questão da instrumentalização do antissemitismo que “lembra, pela intensidade e função política, a obsessão anticomunista da era McCarthy nos anos 1950” e que chega a ser recusada até mesmo por organizações judaicas.
No último ano, Michael Lynk identifica três marcos importantes, no plano internacional: a emissão de mandados de captura contra Netanyahu e Galant pelo Tribunal Penal Internacional, em novembro de 2024; a consideração de plausibilidade de genocídio decidida pelo Tribunal Internacional de Justiça em janeiro do mesmo ano; e a resolução extraordinária aprovada por esmagadora maioria na Assembleia Geral da ONU, em setembro de 2024, dando a Israel 12 meses para terminar completamente a ocupação dos territórios palestinianos. Esta última decisão pode levar a um movimento no sentido da expulsão de Israel das Nações Unidas, caso não venha a retirar-se, como tudo indica que será o caso.
Sobre estas decisões, o entrevistado entende que “o problema não é o direito internacional em si”, que tem vindo a funcionar como seria esperado, “mas sim a política internacional e a falta de vontade política” para obrigar Israel a parar. Os tribunais internacionais dependem do Conselho de Segurança da ONU para serem eficazes e este órgão fulcral das Nações Unidas e, mais amplamente, o sistema das Nações Unidas “já não refletem as realidades geopolíticas atuais”.
Sobre o uso do direito de veto dos cinco membros permanentes no Conselho de Segurança, Link fornece um dado interessante: desde os anos 1970, os EUA usaram o seu veto 49 vezes para proteger Israel – mais de metade de todos os vetos que emitiram. Nenhum outro membro permanente do Conselho de Segurança, incluindo a França, usou o veto para proteger Israel. “Isto mostra a relação excecional entre aqueles dois países”, observa.
O reconhecimento do Estado da Palestina, ventilado recentemente em algumas chancelarias europeias, é visto com muitas reticências pelo perito canadiano. Israel estabeleceu 360 colonatos e 740 mil colonos na Cisjordânia e em Jerusalém oriental, enquanto as lideranças de Israel, incluindo as menos extremistas, opõem-se à solução de dois estados e Israel dá-se bem com os debates sobre os dois estados, enquanto ganham campo para avançar com novas ocupações de território palestiniano. Mais do que de declarações, são precisas “sanções económicas decisivas contra Israel”.
Michael Lynk diz-se convencido de que “a mudança terá de vir da sociedade civil nos países do Norte global. Será ela que terá de exercer pressão suficiente sobre os governos europeus e norte-americanos para os obrigar a cumprir os seus compromissos com o direito internacional”.
Por outro lado, considera que a resistência dos governos ocidentais em falar em genocídio cometido por Israel em Gaza se deve às consequências que tal reconhecimento acarretaria. De facto, segundo a Convenção sobre o Genocídio de 1948 e o Estatuto de Roma de 1998, que criou o Tribunal Penal Internacional, “reconhecer um genocídio obriga a comunidade internacional a agir rápida e coletivamente para o impedir”. Ora, conclui Lynk, “é precisamente para evitar estas obrigações que os governos ocidentais evitam cuidadosamente este termo ou negam a sua pertinência neste contexto”, limitando a sua ação a “declarações de princípio sem consequências reais”, sem desagradar a Trump e à sua administração.


