[FIGURAS E FACTOS]: Venerável D. António Barroso: humanista e missiólogo

Retrato do Padre António Barroso, Jaime Martins Barata (1899-1970), 1947 (anterior), óleo sobre tela, 60 x 50 cm. Estudo para a face da nota de 10 angolares. Foto: ©www.tribop.pt

(Amadeu Gomes de Araújo, Vice-Postulador da Causa de Canonização de D. António Barroso) – Sobre a originalidade do pensamento e da obra de D. António Barroso, o cónego Alcântara Guerreiro, missionário e historiador, escreveu que «o valor da sua obra reside no espírito reformador que a anima». E o Comissário Régio, António Enes, laico e insuspeito, que trabalhou de perto com o prelado na distante colónia do Índico, corroborou esta opinião: o bispo Barroso é mestre de missionários por que não se limitou a repetir fórmulas e métodos, introduziu reformas, procurou caminhos novos.

No Congo e em Moçambique, restaurou o verdadeiro sentido da missionação como evangelização das populações locais. É notável a preocupação que manifestou pelas populações nativas, pelo homem africano, tantas vezes debulhado dos seus direitos fundamentais.

Atento aos mais fracos da sociedade, aos mais fragilizados, teve presente a parábola evangélica do banquete nupcial: «Ide às saídas dos caminhos e convidai para as bodas todos quantos encontrardes» (Mt 22, 9). Preceito que o Papa Francisco escolheu como tema da sua mensagem para o 98.º Dia Mundial das Missões, que se celebra a 20 de outubro do ano corrente: «Ide e convidai todos para o banquete».

Defensor dos direitos do homem africano

1 – O respeito pelo homem. Transparece de alguns comentários que o padre António Barroso registou no seu diário, bem como de relatórios que, anos mais tarde, já bispo, enviou ao governo em Lisboa, uma grande preocupação com as populações nativas. Homem do povo, oriundo de um estrato social indefeso, prestou sempre grande cuidado e atenção aos problemas do homem africano. No início da sua carreira missionária no Congo, analisando as causas da derrocada das antigas Missões ali implantadas, concluiu que a escravatura foi uma das causas principais daquele desaire. Entendia, naturalmente, que não era possível aos africanos acreditarem na mensagem de europeus que, no dia seguinte, os arrebanhavam como escravos. Escreveu que «o poder do exemplo fortíssimo seduz, arrasta. Os missionários pregariam, sem dúvida, que os homens eram irmãos, (…) tratariam com carinho e bondade os seus súbditos (…). Ao lado, porém, do missionário que levava o verbo redentor à raça desprotegida, estava o comprador de homens, o que estrangulava os laços que prendiam o filho ao pai, e a mãe à filha, o despovoador da região, o destruidor de todos os afetos, o homem sem coração, que ganhava punhados de oiro vendendo aquele que a religião lhe dizia ser seu irmão» (O Congo. Seu Passado, Presente e Futuro, Comunicação à Sociedade de Geografia de Lisboa). Prosseguindo esta reflexão, numa conferência que proferiu na Sociedade de Geografia de Lisboa, em 7 de março de 1889, e que ficou célebre, afirmou: «O preto é, por índole, paciente, chegando muitas vezes a revoltar-nos as humilhações a que é capaz de sujeitar-se; como ainda mais nos revolta o nenhum sentimento generoso que anima o europeu que lhas inflige. A quantos morticínios temos assistido na África ocidental? […] Se alguém tem tratado com menos rigor o preto, somos com certeza nós, os portugueses» (ibidem). Afirma-se convencido de que «os sentimentos nobres, a dedicação e o desinteresse não são exclusivo da raça branca, da raça civilizada».

Nota de 10 angolares (frente), com a efígie do padre Barroso, emitida em 1 de junho de 1947. A honradez e a nobreza de carácter do missionário António Barroso deixaram marcas nos povos do Norte de Angola, onde trabalhou nos primeiros oito anos da sua vida missionária, e ficaram, até, como referência naquela colónia. A nota/moeda de dez angolares, ali corrente em meados do século XX, parece comprová-lo, a par com expressões correntes nos negócios, ao longo de muitas décadas, como “Juro pelo Santíssimo Sacramento e pelo Padre Barroso”, “Juro pelo sacramento Padre Barroso”, ou, simplesmente, “Juro pelo Padre Barroso”. Foto: ©domantoniobarroso.pt

2 – Mentalidade nova. Na última viagem que efetuou ao interior do território moçambicano, em junho de 1895, teve conhecimento do comércio de escravos que os árabes ainda praticavam dali para Zanzibar, e denunciou tais práticas esclavagistas. Dois anos antes, numa viagem que fez a Lourenço Marques, lamentou a exiguidade de salário que recebia o trabalhador preto. Muitas das notas que tomou nas suas viagens para o interior, exprimem inquietações semelhantes. Registou com mágoa os desregramentos e a desordem que observou no vale do rio Zambeze, e que enlodavam a vida social. Lamentou ver negros brutalizados, explorados até à crueldade pelos arrendatários da Companhia do Zambeze, a quem, por incompetência ou falta de meios, por vezes as autoridades militares portuguesas se subalternizavam. Escreveu que «muzungos e capitães-mores devoravam como cancros o país»  (Diário). Rico de recursos, mas mal administrado. Criticou as «guerras ruinosas e quase sempre injustas» dos capitães-mores europeus. E comentou, com indignação: «Esta Zambézia tem sido um pinhal da Azambuja, um covil de crimes que nos deshonram. É preciso terminar esta guerra e para isso pegar em muita gente que por aqui anda e pô-la em Timor. […] Nestas coisas o preto é, em geral, quem paga as despesas e são os muzungos que recolhem os proveitos» (ibidem). Ficou mesmo muito preocupado com o que viu e ouviu na Zambézia. O seu secretário, depois biógrafo, Pe. Oliveira Braz, escreveu, a propósito: «As sublevações dos pobres indígenas, provocadas quasi sempre pelos desmandos e incapacidade dos commandantes militares, obrigando a grandes despezas com expedições para as castigar e reprimir, poderiam evitar-se com dispendio muito menor, fundando e dotando missões religiosas (…). Nunca a violencia foi meio adequado a consolidar o reconhecimento perduravel d’uma soberania; e, por isso, os processos de colonisação, por nós adoptados, amarguravam sobremaneira a alma do bondoso prelado pela sorte do pobre preto, sempre victima da crueldade dos Capitães-móres e Mozungos e do abandono moral e material a que tem sido votado pela mãe pátria» (D. António José de Sousa Barroso – esboço da sua biografia. Porto: Livraria Portugueza Editora, 1921, p.66).

3 – Insurgia-se contra clichês. O Prelado acreditava nas capacidades do homem africano, e, a este propósito, escreveu: «Sei que há muito quem negue à raça preta a faculdade de se levantar da sua degradação actual, declarando-a incivilizável; na minha opinião, nada há mais falso do que este juízo; o preto é hábil como os brancos, e eu poderia citar muitos exemplos para comprovar o que avanço. Todo o mal nasce do meio social em que vive. Se me derem vinte crianças pretas e vinte brancas para eu educar, segregadas umas e outras de todo o contacto externo à missão, eu prometo fazer dos pretos homens tão aptos, tão laboriosos e enfim tão honrados como os brancos». E acrescentou, a propósito: «O preto pequeno, nem é destituído de inteligência, nem é desobediente e perverso; pelo contrário, é dotado de boas qualidades, que brevemente perde, atendendo às circunstâncias em que vive» (Amadeu Araújo e Carlos Azevedo, Réu da República, o Missionário António Barroso Bispo do Porto. Lisboa: Alêtheia Editores, 2009, p.211). Insurgia-se contra a ideia feita e bastante cómoda, para muitos governantes, de que o preto é rebelde à instrução e ao trabalho. Considerava tratar-se de um clichê, de uma falsidade: «É muito fácil afirmar que o preto é rebelde à instrução e ao trabalho, é um estribilho banal que à força de repetido parece um axioma, e é uma falsidade, mas é um pouco mais difícil criar-lhe escolas que justifiquem merecer tal nome, e instituições de ensino adequado ao seu desenvolvimento e modo de ser actual. Enquanto a experiência se não fizer, eu pela minha parte, continuarei a acreditar que o preto é muito susceptível de aprender e de trabalhar, contanto que lhe facultem meios eficazes» (Padroado de Portugal em África. Relatório da Prelazia de Moçambique).

Missão (Padre António Barroso dando catequese), Jaime Martins Barata (1899-1970), 1947 (anterior), aguarela/guache sobre cartão, 38 x 50 cm. Estudo para a face da nota de 10 angolares. Foto: ©www.tribop.pt

A preocupação pelo homem africano é bem patente também no enorme interesse que revelou pela etnografia africana. O Professor e etnógrafo Bertino Daciano Guimarães, num trabalho que publicou, em 1956, conta que D. António Barroso comparecia com frequência em manifestações de arte, e que se comprazia em discutir com os artistas: «D. António visitou, um dia, a exposição de certo pintor decorador, e, reparando que, num dos trabalhos, um preto havia sido colocado num plano muito inferior, voltou-se para o Artista e disse-lhe: O Senhor nunca conviveu com pretos!… Recordo com saudades os agradabilíssimos tempos que passei junto desses meus irmãos…e tantos encontrei de coração alvíssimo!». D. António Barroso foi decerto a primeira voz da Igreja missionária que se fez ouvir, de modo recorrente, nos gabinetes dos políticos de Lisboa, em defesa dos direitos do homem negro.